segunda-feira, 13 de junho de 2016

EPOPEIAS NO ACRE INDÍGENA: De Euclides da Cunha ao Txai Terri Aquino

Tipo de embarcação muito utilizada no Juruá no início do século XX
No Aquiry, o banzeiro provocado nas tribulações de Brasília anda toldando as relações políticas indigenistas e indígenas, nos assustando com cenas bizarras, discussões fúteis e muita arenga, disponibilizadas e compartilhadas neste palco mundial, que por vezes põe em foco o que deveria estar na obscuridade: facebook.
Aqui no Juruá também chegam burburinhos confusos da capital, que nos trazem informações sobre reuniões e pelejas acerca do planejamento de certo evento que irá ocorrer nos próximos meses e sobre o qual não darei nenhum destaque. Decisão esta motivada por considerações pessoais que certamente enfadariam os poucos leitores deste blog. Assim, enveredo mais uma vez por questões que para mim são mais agradáveis e que certamente farão melhor à saúde mental dos que seguirem comigo.

Catedral N.S. da Glória, centro de Cruzeiro do Sul
Dia desses recebi a visita da Irmã Gabriela, da Ordem das Irmãs Dominicanas de Cruzeiro do Sul, responsáveis pelo Instituto Santa Terezinha, uma das mais tradicionais e prestigiadas escolas do Acre. O motivo desta visita era o desejo da madre de que fosse realizada uma palestra sobre os povos indígenas do Juruá para um público formado por alunos e professores da escola. A conversa acabou se estendendo e, motivado pelo visível interesse da reverenda, fiz um resumo sobre o processo histórico de ocupação do Juruá por parte dos exploradores peruanos e brasileiros em busca do precioso caucho e da seiva valiosa da seringa. Falei-lhe dos muitos povos indígenas da região, das lutas destes contra os exploradores que chegavam, das correrias e até mesmo sobre as primeiras missas realizadas onde hoje se localiza a tão venerável e visitada Catedral N.S. da Glória, cartão postal e centro da espiritualidade católica de Cruzeiro do Sul. Finalizamos a conversa com os devidos indicativos da palestra e meu comprometimento em conseguir este material para a biblioteca da escola onde, por sinal, meus filhos estudam.

Particularmente, acho muito interessante ler e conhecer esta história, não só por necessidade profissional, mas, também e principalmente, pelo encanto que o assunto “seringal” sempre exerceu sobre minha pessoa. Talvez pela herança de espírito do meu finado avô paterno, muito conhecido nos anos sessenta em Rio Branco como “Cabra Zé de Aquino” (clique aqui), talvez lembranças de criança acreana que, além dos corrupios infantis, se encantava com as histórias contadas pelos avós maternos sobre as aventuras e “visagens” que ocorriam nos seringais e colônias.
Este interesse só fez aumentar ao longo dos anos, nas minhas incontáveis
Imagem antiga dos Ashaninka do Alto Juruá - Foto ISA
subidas e descidas de rios, nas noites de dormida nos batelões, nas conversas à beira de fogueiras ou fogareiros enquanto se preparava o jantar, nas memórias por mim ouvidas dos anciões indígenas em suas histórias, ora pautadas por eventos que viveram, ora baseadas em reminiscências preservadas pela oralidade. Interesse por nomes que vez ou outra, aqui e ali, ouvia e ao qual a memória sobre estes, por vezes, beirava o misticismo. Em outros momentos destacava nítido temor de que a pronúncia de seus nomes fizesse cair sobre nós toda a sorte de maus ventos e infortúnios possíveis.

Quantas vezes, enquanto singrava os rios do Acre nas minhas idas e vindas, olhava para os barrancos e “via” as sombras do passado descendo ou subindo o mesmo rio em que eu me encontrava. Sombras de figuras como Ângelo Ferreira, Pedro Biló, Felizardo Cerqueira, Tescon, Suero Sales, Mâncio Lima, entre outros. Personagens que ainda ecoam suas histórias. Personagens que nos fitam através de fotos antigas e os quais podemos ouvir ao longe, vindo do passado, o eco de suas vozes fantasmagóricas reverberando em cada curva destes rios cor de vinho de bacaba.

Este preâmbulo foi para apresentar algumas publicações que, a meu ver são indispensáveis para quem quer conhecer um pouco mais sobre a exploração e colonização do Vale do Juruá e, também, sua contemporaneidade, tendo como pano de fundo não só a questão indígena, mas também a ascensão e queda dos seringais acreanos.
Assim como muitos interessados e estudiosos tenho acesso e apetite para
O barracão com suas pelas de borracha
muitas leituras e, em meio às diversas fontes de estudo como teses, dissertações, textos antigos e outros, quatro obras para mim se destacam como essenciais e trazem o miolo sobre o qual é possível partir para estudos específicos e mais detalhados.
São obras que trazem os momentos históricos sobre as quais é possível traçarmos uma linha que vai do século XIX até meados dos anos de 1990, no século XX, utilizando como guia os tempos históricos definidos pelos professores indígenas acreanos: tempo das malocas, tempo das correrias, tempo do cativeiro e tempo dos direitos dos índios.
Assim, pedindo a devida vênia aos seus autores vivos e aos que já desceram à mansão dos mortos, dou-me devida autorização para fazer meus comentários sobre os mesmos.

À Margem da História – publicação póstuma de Euclides da Cunha (1866-1909), e que traz a compilação de sua aventura na Amazônia quando este chefiou uma missão para delimitação dos limites entre Brasil e Peru, no início do Século XX. Apesar desta obra não tratar diretamente sobre o Juruá, devido ao fato de que a missão do autor deu-se navegando o rio Purus, sua relevância é enorme, até porque, em decorrência da necessidade de facilitar o escoamento da produção caucheira e da seringa, como também de outros produtos como caça, pesca, madeira, sempre se procurou um afluente que ligasse o Purus ao Juruá. Esta Obra também é muito importante para nos mostrar mais elementos sobre o cotidiano dos seringais e a exploração dos seringueiros. Vale citar que, sendo Euclides da Cunha um escritor clássico de textos maravilhosos, esta obra é riquíssima e de uma beleza literária que chama a atenção e que além de nos remeter ao passado longínquo também nos impele, mesmo que inconscientemente, a uma sensação de que beiramos à ignorância literária.
Ler esta obra é muito interessante, pois “vemos” o mundo amazônico pelos
Euclides da Cunha
olhos de um personagem versado em diferentes áreas de conhecimento, pois o mesmo foi um engenheiro, militar, físico, naturalista, jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, zoólogo, hidrógrafo, historiador, sociólogo, professor, filósofo, poeta, romancista, ensaísta e escritor.
Assim, as descrições são belas, detalhadas, profundas, emotivas e por vezes floreada de uma poesia que nos dá vontade de pedir que alguém leia pra nós, para que sejamos transportados diretamente para as percepções do autor: “E do amanho do solo que se tentou afeiçoar a exóticas especiarias, à cultura do aborígine que se procurou erguer aos mais altos destinos, a metrópole longínqua demasiara-se em desvelos à terra que sobre todas lhe compensaria o perdimento da Índia portentosa”. Impressionante.

Tastevin, Parrisier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá.

É uma importante e riquíssima fonte de informações sobre os povos indígenas, seringueiros e povoamentos que hoje são os municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Tarauacá. Destacam-se os textos do padre Constant Tastevin (1880-1958) que chegou pela primeira vez na Amazônia em 1905 e em seus preciosos textos traz informações históricas e etnográficas dos povos indígenas que são consideradas muito valiosas.
Sua obra é bem conhecida pelos estudiosos que pesquisam a Amazônia brasileira, como fonte de observações e informações preciosas. Antes estes textos não eram tão acessíveis, pois estavam distribuídas em revistas lançadas na primeira metade do século XX, em sua maioria escritas em francês. Assim, este material foi por muito tempo acessível somente a um pequeno grupo de pesquisadores, mas em 2009 foi publicado na íntegra pelo Museu do Índio e rapidamente ganhou destaque entre os interessados em conhecer mais sobre a região do Juruá.
O que chama bastante a atenção é o estilo do autor, que descreve suas
Constant Tastevin
aventuras com uma narrativa que, apesar das minudências, é uma leitura leve e prazerosa, talvez pelo fato de parecer muito com um diário ou estar direcionada para um tipo de publicação ao qual a mesma se destinava à época ou, ainda, pelo fato do autor narrar fatos como testemunha ou como protagonista. Por tudo isso é um texto fácil de vencer e entender e que, em alguns momentos, nos brinda com um humor bastante fino, ao passo que nos mostra o Juruá sob a ótica que, apesar de sua ação missionária na região, descreve o que vê e percebe, de maneira detalhada e sistemática, evitando-se ao máximo a leitura da realidade das comunidades indígenas com um foco excessivo no ponto de vista missionário.
Destaca-se ainda a proficiência da descrição do que é observado ou ouvido, sem impor uma abordagem ou método científico nos seus textos. Eu já li e reli este livro muitas vezes.
As aventuras deste padre pelo Juruá indo de um rio a outro é realmente impressionante.
Esse livro me fez pensar que já visitei todos as regiões citadas pelo autor, do Moa ao Tejo, com o conforto e as facilidades que a tecnologia nos propicia, como: motor de rabeta, barco de alumínio com assento, roupas impermeáveis, roupas de secagem ultrarrápida, gravador digital, câmera digital, lanternas elétricas, pilhas alcalinas, comida desidratada e, mais recentemente o GPS (além de outras tantas tecnologias e confortos). Ainda assim, estas viagens são muitas vezes cansativas, demoradas e sujeitas a muitas situações de risco. Fico imaginando quando o autor as fez, muitas vezes usando a força no remo para vencer a correnteza dos rios, exposto a intempéries e grandes riscos, indo a locais que nem sequer apareciam nos mapas, sobre os quais não havia muitas informações do que encontraria. Para quem não conhece o Juruá posso afirmar que realmente estas viagens do padre Tastevin, realizadas no inicio do século XX, foram uma verdadeira epopeia.
Para adquirir este livro basta entrar em contato com o Museu do Índio, é gratuito.

Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá. Esta publicação, de autoria do antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias, é o resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2008. Neste mesmo ano recebeu o prêmio ABA-GTZ 2008-2010 "Povos indígenas na Amazônia: cenários etnográficos de mudança e continuidade", de melhor tese de doutorado em antropologia. Em 2010 foi publicado o livro com o mesmo título da tese.
O protagonista da obra, como o próprio livro título da obra indica, é o famoso "catequisador de índios" Felizardo Avelino Cerqueira que no início do século XX atuou por muitos anos na região do Vale do Juruá, fazendo contato e "amansando" os indígenas, alternativa esta às chamadas "correrias", prática frequentemente utilizada pelos seringalistas e demais exploradores para "limpar a área" a ser explorada ou para afastá-los das imediações. 
Sua trajetória, iniciada a partir de sua contratação pela Prefeitura de Cruzeiro
Felizardo Cerqueira
do Sul em 1906, é impressionante e seu trabalho de catequese o fez viver uma diáspora que se estendeu da região deste município até onde atualmente se localiza o município de Jordão. O principal povo indígena que o acompanhou foi o Huni Kuin (Kaxinawá) que acreditava que Felizardo era possuidor de poderes mágicos que lhe permitiam se esconder sem deixar rastro, passar sem ser notado e não ser alvejado por arma de fogo. Felizardo se considerava predestinado a "cumprir uma missão outorgada por Deus, com o objetivo de trazer proteção e a catequese aos índios".
O livro nos apresenta uma visão detalhada de toda a sociedade (ou seria "mundo"?) dos seringais e, apesar de ser uma publicação resultante de uma tese, a leitura é agradável e nos leva a uma verdadeira imersão nos mais diferentes seringais desta região, nos apresentando aos mais diversos personagens que viveram ou passaram pelo Juruá, muitos destes, importantíssimos e reverenciados como fundadores das principais cidades locais.
Durante a pesquisa de sua tese, Marcelo teve acesso a documentos disponibilizados pela família de Felizardo. A compilação feita é excepcional e considero esta obra, atualmente, a mais detalhada e completa sobre o assunto. Realmente, não conhecer esta obra é desconhecer boa parte da história do Juruá. É uma das obras que não coloco na prateleira da minha biblioteca, pois, juntamente com a do Tastevin, a coloco em um local sempre à mão, ou seja, ao lado de minha poltrona na sala de casa, onde vez ou outra as leio.
Marcelo Piedrafita
Vale aqui trazer mais algumas informações que acho pertinente quanto ao autor. Marcelo atua há muitos anos junto à Assessoria de Assuntos Indígenas do Governo do Acre. É autor ou co-autor de incontável número de textos (artigos, pareceres, relatórios, etc). Juntamente com os Txais Antonio Macedo e Terri Aquino atuou bastante em várias frentes de ação do indigenismo acreano. Além deste dote para a escrita é um excelente orador que nos leva a reflexões profundas a partir de seus estudos e experiências em campo. Eu o conheci no final dos anos noventa quando ainda engatinhava no indigenismo.

Papo de Índio.
Publicação que traz muito da contemporaneidade dos povos indígenas do Acre tem como autor  o antropólogo Terri Valle de Aquino, o "primeiro grande Txai nawa" que, em meados dos anos de 1970, foi o primeiro antropólogo a subir vários rios do Alto Juruá para realizar levantamentos socioeconômicos e fundiários sobre os povos indígenas do Acre para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Atualmente aposentado, sua trajetória no indigenismo renderia um ótimo livro ou filme.
Este livro é o resultado da compilação de textos da coluna "Papo de Índio" que a partir de 1987 Terri passou a publicar no jornal A Gazeta, em Rio Branco-Acre. Esta coluna tomou forma como fruto de diálogos e colaborações de indigenistas e outros profissionais e ativistas da sociedade civil. 
Eu tive contato com o material que deu origem a este livro (e ao material que de dois outros livros que virão) no início dos anos 2000, quando tive a oportunidade de dividir uma sala com este txai, na CPI/AC e pude ouvir muitas conversas onde aprendi muito sobre indigenismo, aumentando minha "sede" de apender mais sobre as comunidades indígenas do Acre.
Enquanto ajudava a digitalizar os materiais originais eu literalmente viajei nestes textos, indo de um rio a outro do Acre, "ouvindo" as conversas do Terri, Antonio Macedo, Marcelo Piedrafita, Dedê Maia, Vera Olinda e outros "papeadores" que contribuíram com este material. Assim, lendo, subi e desci barrancos e participei de reuniões em aldeias, associações e sindicatos. Essas leituras ajudaram muito na minha formação, preparando-me para minhas primeiras incursões nas aldeias.
O próprio Txai Terri explica um pouco esta obra:
(...) os primeiros papos de índio viraram um livro bonito, de mais de
Txai Terri
300 páginas, com uma orelha de elefante sagrado da Índia (afinal o txai aqui é o Ghandi do Acre tupiniquim, porque adora as índias), denominada "Tá no Papo", de autoria do antropólogo acreano Marcelo Piedrafita Iglesias (ele já recebeu o título de cidadão acreano...). 
E tem ainda uma brilhante introdução do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, editor do livro pela Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), intitulada "A Batata Amarga dos Sonhos - o Prólogo dos prólogos" - ele está se referindo ao Rare Muka, uma batatinha amarga das mirações oníricas encontradas em nossas florestas e muito usada pelos Yawanawá, Kaxinawá e por outros povos pano em suas iniciações xamânicas; já "prólogo dos prólogos" porque a ideia é publicar dois livros de papos, agora em parceria com o compadre Marcelo Piedrafita (...).

 Terri, assim como Marcelo, já escreveu incontáveis textos e possui um acervo documental enorme. Apesar de aposentado do serviço público, continua atuando em prol das políticas e do movimento indígena. É um ótimo orador e uma pessoa muito querida, de opinião forte e detentor de um conhecimento profundo sobre os índios do Acre, sendo um dos principais responsáveis pelo processo de demarcação de grande parte das terras indígenas do Acre e do Sul do Amazonas.


Eu com os Shawãdawa nos domínios
do temido Tescom, 2001.
Se você aguentou ler este texto até aqui é porque o tema lhe interessa, agora só falta adquirir estas obras, pois não conhecer e não ter estudado estes materiais é saber somente um pouco sobre a história rica e dinâmica da exploração e desbravamento do nosso Aquiry. É como conhecer o mundo somente através de uma pequena fresta.
Termino aqui este texto apreciando a escultura que chegou a mim, enviada pelo meu txai Assis Kaxinawá e imaginando quando a Dedê Maia, a Vera Olinda, a Nietta Monte e o txai Antonio Macedo irão nos brindar com a publicação de suas memórias, complementando assim, um tempo histórico ainda não descrito em nenhuma outra obra: o tempo do governo dos índios!
Boa semana a tod@s.
Jairo Lima


5 comentários:

  1. Devo confessar que é sempre um enorme prazer,iniciar a semana com uma leitura tão prazerosa , o texto está excelente, a síntese destas obras nos instiga, a buscar novos conhecimentos.Quem sabe um dia você possa levar, os meus educandos e professores, a uma viagem a este mundo indígena ,com a sua palestra ,que deve ser maravilhosa e inesquecível .Boa semana!

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  2. Oi,
    Fico feliz que estes textos sejam prazerosos de ler. Agradeço o comentário.

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  3. Excelente!!! Adorei a Leitura e consequente aprendizado...

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  4. Parabéns Jairo!
    Cheguei nesse blog por curiosidade e aqui tenho adquirido conhecimentos valiosos. Muito grata por compartilhar,lendo seu texto sentimos empolgação, com certeza o que você tá fazendo agora também vai gerar ótimos frutos no futuro.

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    1. Olá,
      Que bom que sua curiosidade abriu um novo "varadouro" em sua busca de conhecimentos. Espero continuar contribuindo, grato.

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