segunda-feira, 18 de julho de 2016

TXIRÏTI ATSA: O festival da atsa dos Puyanawa


A dança das eras, no jardim das castanheiras - Foto: Cristiane De Bortoli
O grande espírito, em forma de cobra emplumada, enrolava-se em uma dança espiral mágica e multicolor, espalhando pelo recinto suas cores e fragrâncias encantadas. Seu movimento era como uma dança, ritmada e firme, seguindo a cadência da cantiga encantada, entoada por muitas vozes que, vez ou outra, fundiam-se numa só, como se somente uma pessoa estivesse a cantar.
A cada giro dessa estranha dança, histórias eram apresentadas, remontando séculos de memórias. Vozes eram ouvidas contando coisas que, a princípio, eram ininteligíveis, mas que, aos poucos, iam se fazendo entender. Eram histórias mostradas e cantadas sobre feitos fantásticos de lutas, vitórias e derrotas, sobre dias de luzes e um longo período de trevas.
A linda serpente emplumada continuava a mostrar suas memórias. Mostrou como acabou o grande período de trevas e esquecimento, quando quase todo seu encanto se apagou. Mostrou como, nos últimos suspiros e palpitar do coração humano, ela renasceu forte e sábia.
Eu estava ali e a tudo isso assistia, como testemunha silenciosa e encantada pelo que se apresentava à minha frente.
- Txai Jairo? - Alguém me chamou, acordando-me do sonho encantado que estava tendo, fazendo com que desaparecesse a estranha cena que se apresentava. A serpente havia partido e, em seu lugar, surgiu a verdadeira “realidade” do que se passava: um grande grupo de homens, mulheres e crianças pintadas de jenipapo, ostentando plumas, cantando e dançando de braços enlaçados em torno de uma grande quantidade de caiçuma, acondicionada em barris.
E assim, acordei de minha visão encantada, e lembrei que eu me encontrava na maloca de festas do querido povo Puyanawa.

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Dá pra notar que comecei esta crônica pulando diretamente para o meio da narrativa. Assim, para este texto fazer sentido, terei de retornar algumas horas antes da estranha e encantada cena descrita acima.
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Ao prenúncio do fim do fôlego desta semana que se passou, onde as certezas da noite
Foto: Jairo Lima
transformavam-se em dúvidas ao raiar do dia, tornei-me cicerone de um pequeno grupo de colegas da Justiça Federal que, em companhia da juíza federal da comarca de Cruzeiro do Sul, foram convidados a conhecer a Terra Indígena Puyanawa e prestigiar o primeiro “Festival da Atsa do Povo Puyanawa”.
Mesmo me considerando um incentivador de atividades para que os povos indígenas expressem cada vez mais sua cultura, confesso que não sou o mais ardoroso fã dos festivais, preferindo os momentos de paz e tranquilidade do cotidiano e da dinâmica diária das comunidades.
Mas não podendo me escusar de aceitar um convite feito de maneira pessoal e presente pelo querido amigo Puwe Puyanawa, e tendo que atender a uma atividade institucional formal que exigia a minha presença, resolvi “desencantar“ e me comprometi a estar lá, pelo menos para a abertura do evento.

Assim, um tanto alquebrado pelo odioso resfriado que me acometia, juntamente com os péssimos humores das notícias que me chegaram do Planalto Central, arrumei minha mochila e segui, juntamente com o grupo, em direção ao extremo oeste acreano, vencendo, além do sufocante calor do mês de julho, o desnível da rodovia 364 e as possíveis surpresas que poderiam advir da jornada.

A recepção de chegada à terra dos Puyanawa vakevu não poderia ser melhor: ao longe se via uma fumaça baixa, azulada, que trazia até nossos veículos o aroma, forte e característico, da feitura de uma das melhores iguarias desta parte do Juruá, a famosa farinha de Cruzeiro do Sul.
É tempo das “farinhadas”, e os Puyanawa, como principais fornecedores deste produto para os mercados da região, estão com sua produção a pleno vapor. Entramos numa das casas de farinha e, olhando a labuta dos feitores, matutei: será que os consumidores desta farinha têm ideia de que este precioso produto do cardápio acreano tem o tempero e a “magia” deste povo indígena?

Após a incursão, onde se tentou ensinar à excelentíssima juíza a arte de rachar lenha e peneirar a farinha, seguimos para a Arena, local onde são celebradas as manifestações culturais da comunidade.
Há anos visito esta terra indígena e digo que não deixo de me surpreender com a evolução e o nível de organização das atividades da comunidade, e com as prendas que são capazes de nos propiciar.

Ao largo das duas malocas da Arena, várias barraquinhas apresentavam aos visitantes seus produtos (comidas, remédios, artesanatos etc). Sou sincero o suficiente para admitir que, mesmo após quase duas décadas de indigenismo, não imaginava que ainda me surpreenderia com algum produto feito a partir da preciosa raiz. E, em algumas das barracas, admito que fiquei muito surpreso.
Rapidamente deparei-me com os cineastas do projeto Nokum Txai, que estavam na comunidade já há alguns dias, gravando um dos episódios da série e que fariam todo o registro da festividade.

Ouvindo as orientação de Shainay - Foto: Jairo Lima
Enquanto apresentava o local para meus “ciceroneados”, fui revendo e apertando mãos ou abraçando os queridos parentes Puyanawa, além de alguns parceiros de outras instituições, até chegar aos líderes da terra, os respeitáveis Shainay e Puwe, que, devidamente paramentados, davam instruções aos presentes, exortando-os a beberem caiçuma e orientando-os sobre as atividades que se seguiriam.
Vi um grupo de visitantes, oriundos das colocações e vilas do entorno da terra. Também havia chegado um grande grupo de Cruzeiro do Sul e da cidade de Mâncio Lima. Segundo me informaram, estava prevista a chegada de alguns convidados estrangeiros e de outras cidades, mas estes seriam poucos, já que a festa era voltada para a comunidade, seus vizinhos e parceiros locais.

A abertura do evento seguia o esperado atraso, quando senti que os remédios que me mantinham alerta e invisível ao resfriado estavam perdendo seu efeito. Contrariado, sentei-me resignado para apreciar o movimento e explicar aos meus companheiros alguns detalhes sobre a festa e a comunidade quando, a um olhar rápido, deparei-me com o olhar brilhante do amigo Puwe que, de maneira discreta e com um rápido beberico, havia acabado de ingerir a bebida sagrada, o Uni. Olhou-me, e com seu sorriso característico fez-me sinal para que me aproximasse, servindo-me não mais que um pequeno gole desse sagrado vinho.

Sentei-me, agora mais tranquilo, e passei a apreciar o movimento cada vez mais acelerado, que prenunciava o início das festividades. O consumo de caiçuma aumentou e todos começaram a se colocar em círculo, com suas vestes e plumas, demonstrando a majestade de suas pessoas e a alegria colorida que estava por vir.
Ao microfone, Puwe avisava aos presentes que somente após a chegada do convidado principal é que seguiriam com a abertura do evento, onde seriam feitas as palestras dos convidados e as atividades previstas. No entanto, iriam começar a cantar umas canções para “esquentar” o ambiente. Rapidamente se organizaram e começaram a dançar e cantar, com as saias de palha seguindo a cadência de pernas fortes e pintadas com os desenhos tradicionais. Nisso, a força e os encantos da bebida sagrada que ingeri chegaram...
...
Cheguei ao “meio” do texto. Agora retomo a partir daqui à cena descrita no início do texto, e sigo a partir dela.
...

- Txai Jairo? – a voz ao meu lado me chamou e me disse animadamente que eu ficasse à vontade, pois estava em casa.
Sorri, agradecendo a consideração. Nisso, lembrei-me dos meus ciceroneados. Percorri o
Todo mundo junto e misturado - Foto: Jairo Lima
ambiente com os olhos, encontrando-os totalmente misturados, de braços dados na grande roda e bailando ao ritmo da canção. Fiquei feliz, “missão cumprida”, pensei.
Continuei olhando a cena e admirando a beleza gerada pela junção de tudo o que estava ocorrendo naquele momento. Era o conhecido “tudo e todo mundo misturado agora”, tão comum nas festas indígenas, e de um significado importantíssimo que, geralmente, passa desapercebido aos olhos dos nawa (não-índio): trata-se da mescla de tudo o que está ocorrendo com todos que estão presentes e o que está sendo feito por cada um destes, como se tudo fosse uma coisa só, interagindo em perfeita sinergia temporal e espiritual, ligadas por invisíveis e etéreas linhas que vão formando uma verdadeira rede, um verdadeiro kene (desenho tradicional).
Eram indígenas misturados com não-índios, de braços dados dançando; o grupo de filmagem indo e vindo, numa dinâmica que a olhos leigos como os meus era caótica; pessoas sentadas dentro da maloca, conversando ou somente olhando; crianças comendo coisas; outros cantando, enquanto batiam palmas. Isso tudo formava o que descrevi acima.

De repente a cantoria cessou. Os braços desenlaçaram-se e outra movimentação tomou conta do ambiente. Era nítida a energia que circulava naquele momento, algo estava prestes a ocorrer, pois todos ficaram parados, olhando para a entrada da maloca. Nisso, o esperado convidado principal da festa chegou, escoltado pelo cacique tradicional Mário Puyanawa e pelo chefe da FUNAI em Cruzeiro do Sul, Luiz Valdenir. O convidado tão querido e esperado era ninguém menos que o Txai Antonio Macedo.
Confesso que toda esta cena foi forte e iluminada aos meus olhos.
Anunciado ao microfone, o querido Txai entrou e logo foi cercado por todos os Puyanawa que, como crianças que reencontraram o pai depois de muito tempo, passaram a abraçá-lo e a cumprimentá-lo efusivamente enquanto, no microfone, ouvia-se a ordem dada pelo Puwe: todo mundo bebendo caiçuma e abraçando o Txai Macedo!

Txai Macêdo todo uniformizado pra festa
Foto: Jairo Lima
Eu, agraciado com a causalidade desta natureza cósmica imprevisível, tive um feliz reencontro com este Txai que, vendo-me, logo veio em minha direção, dando-me um abraço forte e sincero. Confesso que me senti como uma criança também. Pois, assim como os Puyanawa – e outros povos indígenas deste Aquiry- muito rezei para que os espíritos sagrados o conduzissem em segurança na difícil jornada que ele empreendeu em busca de cura da enfermidade que quase o tirou de nosso convívio terreno.
Ouvimos suas palavras calorosas, onde agradeceu pelas energias recebidas, os bons pensamentos e exortou a todos a continuarem neste caminho, em busca de fortalecer a cultura. Cultura esta que ele muito lutou para que não desaparecesse.

E a festa finalmente teve seu “início formal” realizado.
Acabei decidindo: vou ficar e apreciar até a última gota desta energia. E assim fiquei nestes dias. E estive presente em seu encerramento, neste sábado tórrido, lotado de convidados e energias positivas. Com muita comida, muita caiçuma e muitas atividades.

Não foi um festival voltado para que os convidados experimentassem a cultura indígena em todas as suas dimensões, participando de rituais com a aplicação das medicinas. Foi, sim, uma festa mesmo, onde não ocorreriam rituais sagrados, nem curas, nem aplicações de medicina. A ordem era festejar, e a bebida da festa era a caiçuma. Somente para os que estivessem de “dieta” ou doentes (meu caso), teriam um pouco de acesso ao Uni sagrado para que ficassem em sintonia com os demais.

No decorrer dos dias, muitas autoridades se fizeram presentes, entre senadores, secretários de estado, representantes de órgãos, entre outros. Entre estes representantes veio, também, o amigo e grande indigenista Marcelo Piedrafita Iglesias.

Conversando com os Txais Macêdo e Marcelo ao pé da castanheira
Foto: Cristiane De Bortoli
Foi um encontro feliz que me propiciou muita conversa boa, sempre com muito sorriso e informações, enquanto seguíamos a procissão cantante dos Puyanawa em direção ao novo espaço de danças ao pé de grandes castanheiras, onde se juntou à nossa pequena assembleia, o Txai Macêdo.

Juntos, eu e Marcelo ouvimos uma das histórias do Txai Macêdo sobre a origem da pesca tradicional das mulheres Puyanawa. Juntos, eu, Marcelo e o Macedo, sentamos aos pés das castanheiras sagradas da Arena para papear e trocar ideias. Juntos, nós três fizemos planos de ações futuras. E eu, sozinho, descobri que estava onde queria estar, com pessoas que eu queria encontrar, num momento que eu não poderia perder, fazendo parte deste “tudo” que, com “todo mundo misturado”, dá sentido à minha existência e ao caminho que escolhi junto aos povos indígenas.

Não foi simplesmente um festival. Este evento teve um significado muito maior para os Puyanawa, tornando-se a coroação de um trabalho árduo, de muita pesquisa e muito esforço para retomar algo que quase se perdeu, para reacender uma chama que quase se apagou.

Mas, como bem disse o sábio Baltasar Grácian: a perfeição não consiste na quantidade, mas, na qualidade. Tudo o que é muito bom foi sempre pouco e raro, enquanto a abundância é pouco apreciada. E assim, a festa que tão animadamente começou, também animadamente estava chegando ao seu ocaso, ao término do terceiro dia. Chegou o momento de retornar para casa. Felicidade no coração. Pensamento firme e o sorriso no rosto de quem viveu um momento que nunca se apagará da memória.

Enquanto venço o caminho de retorno, já não me importo com o calor sufocante. Fico lembrando nas palavras do Txai Macedo quando me encontrou e resumiu toda a situação para mim e para os que comigo estavam: sabe txai, é isso que faz a diferença, é isso que compensa tudo aquilo que a gente faz no nosso trabalho, em nossa vida, com nosso esforço. Esse reconhecimento que a gente recebe, esta coisa no coração de um povo desses, sabe txai? É isso!
Concordo meu querido amigo, afinal, antes que “acordasse” da visão que estava tendo com a serpente emplumada, vi que mãos benignas protegeram a chama dos Puyanawa, durante os anos de trevas, das correrias e do cativeiro do patrão. Vi que esta chama esteve guardada e em segurança quando outras mãos lutaram pela demarcação da terra. Vi, ainda, que esta chama se tornou labaredas, e tudo reacendeu e queimou quando outras mãos finalmente a liberaram. E também vi que, entre estas mãos, além das grandes almas Puyanawa, também estavam as suas, meu grande Txai.

Mais uma vez, os Puyanawa estão de parabéns. Realizaram um grande evento, sem
Inaugurando a nova área de danças
Foto: Cristiane De Bortoli
estardalhaços e muito aconchegante, mostrando como estão desenvolvendo cada vez mais sua comunidade e mostrando a todos que este festival é somente para que os visitantes e parceiros vejam e festejem as vitórias junto com eles. Ou seja, em vez da comunidade servir ao festival, foi o festival que veio servir a comunidade.

Já em casa, ainda embalado pelos sentimentos e sensações vividas, resolvo navegar na internet para ver as notícias e, logo ao ver a primeira e terrível manchete, desisto. Decido que o melhor que posso fazer neste finalzinho de sábado é deixar que o mundo cuide de si, para que eu possa refletir e registrar tudo isto que agora vos apresento, continuando nesta emanação positiva.

Caso queiram ver a galeria de imagens produzidas durante o evento, para que possam visualizar o que foi narrado nesta crônica, clique aqui.

Boa semana a tod@s!

3 comentários:

  1. Essa tua narrativa, muito bem escrita como sempre, conseguiu extrair lágrimas de meus olhos quando relata a chegada de Txai Macedo. Realmente, um momento super especial. Parabéns por mais um belo texto e parabéns ao Puyanawa!!!

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  2. Grato, meu amigo Moacir. Realmente foi um momento emocionante estar na comunidade no dia desta festa e poder, mais uma vez, conversar com o Txai Macedo.

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  3. Parabéns Jairo, que festa linda!
    E que texto maravilhoso escrito com o coração,mesmo sem conhecer esses costumes e tradições você consegue de uma forma mágica nos remeter ao momento da festa,nos encantando com cada detalhe e com cada momento, você tem simplesmente o dom de escrever e de nos envolver com suas forma de escrever,que é simplesmente maravilhosa.

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