segunda-feira, 22 de agosto de 2016

SAGRADO INDÍGENA: Interações e desafios no mundo dos Yura...

Foto: House of Indians
As águas voltaram a fluir como lágrimas nos céus do Juruá trazendo o refrigério desejado e a proteção das águas contra o fogo, tal qual uma quimera insaciável que vinha destruindo nossas florestas.

No Aquiry, precisamente no meu querido Seringal Empresa (Rio Branco), a malevolência descabida da bandidagem, que cresceu à sombra da displicência estatal, queimou o acervo histórico de nossa capital. Acervo este abandonado à sorte, sem cópias de segurança guardadas em outro local, como se a memória dos dias que se passaram não merecessem atenção dos que comandam as penas do poder.

No “mundo indígena” tivemos uma semana de desencontros e muita arenga ocasionada por um evento que irá ocorrer na capital. É a tal da “Conferência Mundial da Ayahuaska”, onde os “doutores que entendem de tudo” resolveram trazer para a terra de Juramidam e dos Povos Indígenas um evento excludente e caríssimo, que deixa de fora aqueles que não têm “contatos” e recursos financeiros para participar.
Para mim, isso é o cúmulo da arrogância casada com cinismo.


Esses doutores, que vem de terras longínquas, chegam neste reino, onde nasceu e cresceu a chamada “cultura da ayahuasca”, e têm a ousadia de ditar como deve ser o evento, quem pode participar, quantos podem participar, etc. Chegando ao ridículo de definirem cotas para a participação indígena e exigir que os pajés e demais indígenas apresentem um resumo escrito do que irão falar no evento, isso dentro dos quinze minutos que os mesmos terão à disposição. É mole?

Pois é... parece brincadeira, mas não é, os “dôtôres” vão discutir a ayahuaska, e querem deixar de fora os verdadeiros donos e herdeiros desse conhecimento que teriam muito a falar sobre o "vinho das almas".

E assim, mais uma peça do conhecimento indígena torna-se um produto, no caso deste evento, um produto de estudo, onde somente uns poucos têm a suposta iluminação, garantida por um pedaço de papel (chamado diploma) que os transforma em donos do conhecimento. Este produto de estudo tornar-se-á um meio de ascensão profissional e financeira para uns poucos nas academias espalhadas pelo mundo.

Extrapolando um pouco mais o linde dessa reflexão, abordo nesta semana mais um tema
Huni Kuin durante a festa tradicional - Foto: CPI/AC
ligado ao chamado circuito xamãnico, que iniciei no texto anterior.

No que diz respeito aos rituais e medicinas de origem indígena há um grande "circuito" em desenvolvimento, com vários produtos e serviços à disposição dos interessados.
Nada contra isso, confesso que acredito ser preferível utilizar medicinas e rituais indígenas, usufruindo de suas benesses e ensinamentos, do que sujeitar-se a tratamentos alopáticos e procedimentos invasivos de nossa medicina tradicional, nos casos em que for possível assim proceder.
Também acredito que a espiritualidade e a medicina natural, não só indígena como de todos os povos (quilombolas, asiáticos, etc), deve sim tomar espalhar-se por todos os rincões de nosso Brasil. Mas, este "espalho" não deve se dar de qualquer maneira.

Aqui do Acre vejo ser “exportado” para o resto do Brasil e do mundo produtos como o rapé, a sananga, a ayahuaska, entre outros. Além, é claro, dos serviços de curadores e cantores da tradição que participam de rituais e eventos dos mais variados tipos, divulgando sua cultura tradicional.

O destino destes produtos e serviços são os grupos alternativos, esotéricos e irmandades dos mais variados tipos que, de maneira gratuita ou paga, propiciam a seus membros e convidados a oportunidade de conhecer e vivenciar um pouco da cultura indígena.
Infelizmente, há circunstâncias e casos que precisam ser citados e discutidos, de maneira a se evitar a banalização, a exploração e os estereótipos que tais práticas podem causar.

Entre os vários comentários que vi no texto que publiquei anteriormente, alguns me chamaram atenção por se referirem ao grande número de indígenas do Acre que vem realizando rituais ou aplicando medicinas Brasil afora. Teve comentários descontraídos como este:  pois é, é um tal de txai pra cá, txai pra acolá...
No entanto, vi outros que, fora não terem graça alguma, pois atentam para questões sérias que devem ser observadas por aqueles que fomentam estes intercâmbios de indígenas e a compra de seus produtos.

Como citei no texto anterior, é grande a mística que os indígenas exercem sobre estes grupos ou pessoas mais “antenadas” com o mundo espiritual e a natureza. Para muitos, os indígenas representam a áurea do sábio, guerreiro, guardião, puro e iluminado. O índio assume, então, a figura daquele que desperta a lembrança de um ethos há muito adormecido, no âmago do ser espiritual do indivíduo.

No caso dos indígenas acreanos, soma-se a esta visão que se tem do índio à força estimulante e sensorial de suas medicinas, em especial a ayahuasca e o rapé.
Assim, nos últimos anos cresceu e muito o movimento de indígenas que vão aos grandes centros urbanos brasileiros e a outros países realizar rituais dos mais diversos tipos, ou participar de eventos de intercâmbio sagrado. Paralelamente a este aumento, também cresceu a demanda pelos produtos diretamente associados a estes.

Este aumento fez com que se estabelecesse um mercado informal que, como qualquer outro, traz em seu bojo um lado bem negativo, não só para os povos indígenas como também para o meio ambiente e, em certo grau, para aqueles que fomentam e utilizam este mercado.

É preciso, primeiramente, desconstruir a visão de que todos estes indígenas que participam de rituais ou aplicam as medicinas tradicionais são "pajés". Muitos são, na verdade, divulgadores ou mensageiros da cultura: estudantes do caminho sagrado ou aprendizes dos mistérios de sua cultura. São curadores, cantores, ambientalistas, artistas, etc. Ou seja, nem todo índio é pajé, muito menos, e principalmente, se for jovem.

Mulheres Yawanawá- Foto: Tashka Yawanawá
Também é preciso desconstruir a visão planificadora de que todos os Povos Indígenas do Acre são iguais. A riqueza cultural e seus traços são tão distintos que nos faz entender ser o Acre um pequeno continente onde temos diferentes nações indígenas.
Infelizmente, existem pessoas e grupos que vem explorando esta imagem do índio acreano, seus rituais e medicinas. Realizam verdadeiras turnês, onde são cobrados valores exorbitantes pela participação de interessados. E, em muitos casos, estes valores não são repassados para os indígenas ou suas comunidades.

É preciso valorizar e fomentar a divulgação das práticas indígenas, no entanto, há de se ter atenção em como isso se dá, e a quem beneficia. Sempre falo que é melhor recorrer à fonte que a atravessadores.

Também é preciso refletir sobre a prática de se comprar penachos (cocares) enormes feitos de penas de pássaros, muitos destes em extinção. Me pergunto: Como é possível uma pessoa que comunga ou se diz identificada com a natureza e a prática natural dos povos indígenas, incentivar estes a venderem seus cocares ou a facilitar sua venda em quantidade neste mercado informal de produtos indígenas?

Por acaso a pessoa que compra um cocar feito de penas de gavião real (harpia) tem noção de que o animal foi morto para que esse paramento fosse feito?

É preciso entender que este cocar é parte da identidade (contemporânea ou não) do indígena, mas, quando este sai de sua posse e é vendido a outros, sua força espiritual e identitária tornam-se inexistentes, e se transformam em nada mais que um adorno. Esta prática vem aumentando e está contribuindo com a degradação da fauna, já bastante diminuída, das comunidades indígenas. 
Moral da história: cocar é coisa de índio e só se justifica ou faz sentido no "mundo" deste, ou seja, na cultura indígena esse adereço faz todo sentido e completa todo o ethos de seu povo, mas isso não se estende a nós, yura (não-índio).

Essa questão não seria um problema se este adereço continuasse sendo usado somente pelos indígenas que viajam pelo Brasil e pelo mundo. O problema é que estes divulgadores são impelidos a venderem seus cocares e, como este faz parte de sua identidade social e cultural, é necessário repô-lo quando retornam às suas comunidades, criando-se, assim, um ciclo vicioso.

Pergunto-me: como uma pessoa (não-india) tem coragem de usar um cocar de penas em um ritual,  Principalmente em um ritual com uso de ayahuasca, sem se sentir mal pelo pássaro que sofreu ou morreu para que o mesmo fosse feito?
Até entendo aqueles (não-índios, que isso fique claro) que se sentem mais protegidos ou mais "completos" quando utilizam uniformes ou outros adereços durante seus rituais, mas, acho meio contraditório que a pessoa pregue a harmonia com a natureza, mas não se incomoda de comprar e utilizar um adereço feito de animais mortos.

É simples, galera: no mundo espiritual não importa a embalagem, o que importa é o conteúdo.
Concordo com o que me disse a amiga Andrea Prestes: na hora que o "dono" destas aves vier cobrar, quero só ver.
Dito isso, acredito realmente que é preciso refletir sobre essa situação. Com certeza os yuxin destes pássaros ficariam muito agradecidos e dariam muito mais proteção a quem assim procedesse. 


Os mecenas e demais interessados que tem acesso ou financiam estes
Ashaninka - Foto: House of Indians
divulgadores e pajés, e que compram produtos indígenas procurem, também, contribuir com a transformação destas práticas informais em algo formal, sério, ambientalmente sustentável e que venha a beneficiar a comunidade de origem do produto ou dos indígenas que recebem. É preciso estabelecer uma conexão direta com a comunidade ou com o indígena que a representa, seguindo os tramites e normas existentes.

Quanto à ayahuaska, preciso informar um dado preocupante: em muitas Terras Indígenas, o cipó nativo está escasseando, tornando necessário realizar manejo desta planta e, em algumas comunidades não tão organizadas, praticamente não se encontra mais em suas imediações.

Também, com a demanda crescente, alguns povos que possuem diferentes tipos de preparo da bebida sagrada optam por um preparo mais “genérico”, que utilizam em todos os tipos de rituais quando viajam para divulgar a cultura. A longo prazo, isso pode ser prejudicial, caso este conhecimento de preparo se perca, devido à sua pouca utilização.

Quando chego em uma comunidade sempre procuro incentivar e perguntar sobre os diferentes tipos de preparo do chá sagrado, perguntando sobre a utilização dos mesmos e os tipos de rituais que podem ser feitos.
A riqueza dos preparos e profundidade dos rituais utilizando estes diferentes preparos é algo indescritível, uma verdadeira enciclopédia espiritual.

Como já citei antes, é salutar propiciar o intercâmbio e a difusão dos conhecimentos indígenas, bem como acessar e comungar de suas práticas culturais sejam elas de que tipo for. No entanto, é necessário prudência e bom senso para que essa experiência se dê em conformidade com o equilíbrio espiritual de onde se originou estes conhecimentos, ou seja, a natureza.

É preciso valorizar a comunidade e sua cultura como um todo, e não somente aquele que viaja para apresentá-la. É preciso garantir que os benefícios recebidos sejam distribuídos ou venham a beneficiar a comunidade, pois a cultura que estes apresentam não são exclusividades suas, pertencem a uma coletividade.

Chegou o momento de se formalizar e qualificar o acesso a estas medicinas e rituais. Como isso se dará eu não sei, mas ficarei muito feliz em poder ajudar.
O que sei é que tem comunidades sendo prejudicadas pelas consequências negativas deste circuito xamânico.

Ritual Kuntanawa - Foto: Haru Kuntanawa
Já atendi indígenas que, ao retornarem destas turnês, falam haver voltado “mais pobre" do que quando saíram de suas aldeias. Contam com surpresa os valores cobrados por uma aplicação de kambo ou por um frasco de sananga ou rapé. Muitos destes foram vítimas de atravessadores, ou seja, pessoas que se aproveitaram desta demanda e deste mercado xamânico para ganharem muito dinheiro, utilizando estes indígenas como objetos de venda de produtos e serviços.

Também já recebi inúmeras denúncias de atravessadores yura que, abusando da boa vontade e confiança das lideranças das aldeias, compram muitos produtos, se comprometendo e mandar a parte do pagamento, mas, não cumprem sua parte do acordo.

Os jovens que viajam também estão sendo chamados para explicarem aos mais velhos o que andam fazendo, durante suas viagens. Pois estes anciões reclamam que alguns, ao retornarem, deixam-se levar pelo caminho errado, gastando os recursos recebidos em futilidades na cidade, utilizando a cultura para ganhos que não são repassados às suas comunidades. A liderança Tuwe Huni Kuin já alertou para isso (clique aqui).

Claro que muita coisa positiva também advém destes intercâmbios. Projetos que beneficiam comunidades estão sendo realizados em muitas terras indígenas no Acre, por pessoas e grupos organizados que realmente buscam um relacionamento sério de cooperação com as aldeias. Não poderia deixar de citar aqui os projetos exitosos desenvolvidos pelos povos Yawanawá, Puyanawa, Ashaninka, Kuntanawa e por algumas comunidades  Huni Kuin, que tiveram sua origem justamente pelos contatos realizados durante estes intercâmbios, com pessoas e organizações sérias, que passaram a serem parceiras destas comunidades.

Mas, de modo geral, como já citei ao longo do texto, chegou o momento de se discutir
Tuwe Huni Kuin - Foto: acervo pessoal
melhor esse "circuito". E esse movimento deve partir não só dos órgãos governamentais de controle e apoio, mas, também, e principalmente, das comunidades indígenas e seus parceiros.
Já temos iniciativas sendo feitas, neste sentido, as comunidades estão se organizando e suas lideranças estão colocando esse assunto na roda. Discussões sobre patentes ou selos indígenas estão avançando nestas comunidades.
Mas o caminho ainda é longo, enquanto isso, prudência e bom senso são de boa medida.

É isso.

Este assunto ainda não fechou. Sei que teremos que abordá-lo, a partir de outro foco, para darmos continuidade a esta reflexão que, dada sua complexidade, não deve ser tratada de uma só vez.

Antes de finalizar preciso citar a forte impressão que o documentário Reel Injun deixo em mim. Este filme mostra os efeitos da indústria do cinema sobre os povos indígenas dos EUA e a maneira desigual e injusta que são retratados. Está disponível no Netflix e sugiro (meio que insisto) que assistam, vale à pena.
Após assisti-lo fui dormir com as palavras de John Trudell (ativista do povo Lakota) martelando em meus pensamentos: eles (os brancos) tentavam nos imitar, lembrando quem eles eram. Todo humano é descendente de uma tribo. Brancos são descendentes de tribos, houve uma época em que usavam penas e contas, além de conchas. Houve um tempo no passado, antes da mentalidade colonialista, que os transformou no que são hoje(...). O mesmo que aconteceu conosco, também aconteceu com eles.

Termino o texto observando o crepúsculo anunciar a chegada da noite no Juruá. Uma brisa suave dá a entender que teremos chuva. Que bom!

Boa semana a tod@s.

Jairo Lima

2 comentários:

  1. Muito bom texto e a reflexão. Iniciei um texto exatamente sobre este assunto para um evento na UFAC, no ano passado, mas não consegui concluir bem participar do evento devido às viagens de campo. Se possível, vou tentar dar uma finalização e passar adiante. Abraço!

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  2. Oi Moacir. Vejo que estamos na mesma "vibe", de temas a serem abordados. O Txai Macêdo acredita ser necessário realizarmos um evento para discutir questões como esta.

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