segunda-feira, 24 de outubro de 2016

FESTIVAL YAWA 2016: Em memória do sábio cacique Tuikuru...

Tuikuru Yawanawá - Foto: Rapa Nuy
Para quem já teve ou tem a oportunidade de conhecer o Acre, tendo como foco suas florestas e os povos que ali habitam, fica impressionado com o dinamismo e a vivacidade que movimentam este “mundo paralelo”.

Sempre está acontecendo algo interessante, seja numa aldeia indígena, seja numa comunidade de extrativista, seja numa das centenas de irmandades do daime espalhadas pelas cidades do Estado.

Assim, dando mais cor e movimento a este dinamismo, nesta semana que se inicia, teremos a realização do XV Festival Yawa, realizado pelo povo Yawanawá, aldeia Nova Esperança, TI Rio Gregório. Este evento ocorrerá de 24 a 31 de outubro deste ano.

Saber sobre este povo, ou sobre este festival, não é difícil. Uma busca rápida na internet, além de propiciar o entendimento sobre estes, ainda surpreenderá o leitor ao se deparar com as diversas reportagens e links sobre os projetos e aparições de seus representantes em diferentes espaços sociais e culturais.

O que destacarei na crônica de hoje, no entanto, é um personagem que, sem o qual, tudo o que vemos sobre este povo talvez não se existisse. 

Falo do saudoso Tuikuru Yawanawá, grande cacique deste povo que merece todas as honras por tudo que fez para garantir o território onde hoje se encontra a terra indígena, além de incentivar os jovens a praticar a cultura tradicional.


Lembro muito bem quando, nas origens deste festival, eu me encontrava nesta Terra Indígena, na minha primeira viagem para a região.

Subi o rio Gregório num pequeno barco, sob o comando do Tuikuru que, muito solícito, me contava histórias sobre o rio, sobre as mulheres e os jovens Yawanawá, sobre a luta para livrar-se dos missionários e sobre seus projetos pessoais para desenvolvimento da comunidade.

Eu, “menino” ainda, a tudo ouvia, simplesmente encantado com as palavras e a vitalidade da voz e presença dele.

- Tu vai ser proeiro até o final da viagem txai! Vai treinando aí. Se o barco bater a culpa vai ser tua viu? – Me disse, entregando-me uma grande vara para que eu ajudasse a navegação nas tortuosas curvas cheias de paus e galhos deste rio tão cheio de história. Não me saí muito bem nesta primeira experiência, mas, o que importa é a mensagem que me foi transmitida por este simples gesto, por esta obrigação a mim passada.

Essa era uma característica que eu sempre admirei nele: incentivar os mais jovens a assumirem responsabilidades, de fazer parte de algo, o que quer que fosse.

Paramos em sua aldeia, Mutum, onde ele insistiu em me mostrar “uma coisa que ainda é segredo, mas que vai trazer muita coisa boa para o meu povo”, me disse.
O que me mostrou foi algo que, a princípio, não vi nada de excepcional: um local atrás da aldeia, um pedaço da floresta.

Tuikuru aplicando Sananga no sertanista da FUNAI, 2002 - Foto: Jairo Lima
- Vem cá txai, vou te passar um remédio. – Disse-me, pegando uma folha e segurando minha cabeça. Aplicou-me nos olhos a seiva que botava desta folha e, de repente: BUM! Meus olhos arderam muito, muitíssimo. Não conseguia abri-los.

O mal-estar passou rapidamente e, tal qual um cego que volta a enxergar, passei a “ver” o local com uma visão bem mais limpa e clara. Eu acabara de ter meu primeiro contato com uma medicina maravilhosa, a sananga.

Tuikuru então me explicou que aquele lugar era a farmácia sagrada da aldeia, que ele vinha se dedicando a reunir as diferentes medicinas tradicionais indígenas, pois sabia que isso seria de grande valia.

Falou-me que via no futuro aquele local como um “hospital” que serviria para curar tanto seu povo, quanto aqueles que procurassem ajuda.

Seguimos para a aldeia Nova Esperança, objetivo final da viagem, onde eu iria assessorar os trabalhos na escola da comunidade, além de ajudar nas discussões sobre a prevenção de doenças.

Lá conheci o pajé Yawa, que, quase toda a noite, jantava conosco, e que me contou a história tradicional da criação dos diferentes povos que habitam a terra.
Pude presenciar alguns ensaios, à noite, dos jovens cantando e dançando as músicas aprendidas com o velho Yawa e o Tuikuru. Em minhas memórias, estes ensaios ocupam um espaço todo especial.

II Festival Yawanawá, 2003 - Foto: Tashka Yawanawá
Apesar de minhas atividades na aldeia estarem devidamente estabelecidas em meu planejamento, todas as tardes eu era chamado pelo Tuikuru para “conversar”. Na verdade, esta “conversa” era ele falando e eu ouvindo, mas, digo que todos os momentos como este que tive com ele ao longo dos anos, serviram como base de toda minha vida pessoal e profissional.

Este festival Yawa, assim como os outros que surgiram a partir desta iniciativa – e foram muitos – é o resultado direto dos esforços dele, apoiado pela presença e postura do Tashka Yawanawá e do Biraci Nixiwaka Yawanawá, jovens lideranças na época, e que também contribuíram e ainda contribuem com o processo de organização e sucesso deste povo, mas isso é outra história.

Tuikuru via este movimento de festival como parte do processo de unir seu povo em torno de um projeto, de um objetivo. Era a oportunidade de juntar todas as famílias espalhadas pela região que, por vezes, estavam divididas em posicionamentos diversos. Ao longo de sua vida muito se esforçou para consolidar este evento.

Também foi o principal incentivador para que as mulheres assumissem papéis de protagonismo junto à comunidade, por crer que a participação delas era essencial para o desenvolvimento do seu povo, pois, segundo me disse certa vez: o pessoal tem que parar de ver a mulher só pela sua beleza. Parar de pensar que mulher é só pra cuidar da casa e dos filhos. Elas têm um poder muito grande e uma seriedade muito grande com o que se comprometem.

Perfeito.

Tuikuru era assim mesmo, um visionário cheio de vida. Nascido em maio de 1929 no Seringal Cachinaua, um dos muitos da região. Filho de uma Yawanawá com um Ushunawa, herdou do pai o nome e, assim como este, cortou muita seringa para o patrão.

Dotado de uma áurea de liderança e sabedoria, foi fundamental para o processo de luta  pela terra e pela expulsão dos missionários radicados há mais de quarenta anos na região.

O começo de tudo, primeira gravação das canções Yawanawá, 1999
Tuikuru é o primeiro à direita - Foto: acervo Tashka Yawanawá
Humilde, sempre evitou trazer para si aquilo que não possuía. Como bem lembrado pela sua neta, Edna Yaka Yawanawá, em sua pesquisa sobre sua vida: Tuikuru não gostava de ser chamado de pajé, pois, para ele, pajé era além de sua sabedoria, ou a vida ou a morte. Sua habilidade era notável e representada em confecções de artesanatos. Sua habilidade também se desenvolvia na música, conhecimento das ervas medicinais. Era um grande detalhista e contador de histórias. Por essa desenvoltura o mesmo se intitulava Professor Tradicional. Sua forma de ensinamento era oral e sua maior preocupação era com o futuro das crianças, o que elas estavam aprendendo sobre a cultura Yawanawá. Suas músicas, histórias e conselhos eram realizados todos os dias em sua casa, ou na escola e as conversas iam desde a organização social do povo até questões como educação, saúde, casamentos, etc.

No começo, como pude presenciar em muitas ocasiões, o próprio Tuikuru era quem comandava o ensaio para os festivais, exigindo seriedade e não tolerando brincadeiras. Era rígido sim, mas uma rigidez que não suscitava descontentamentos por parte da sua comunidade e dos jovens que estavam sob sua “vara”.

A aldeia que sedia até hoje o Festival Yawa, Nova Esperança, foi fundada pelo Tuikuru, junto com suas três esposas, filhos e netos.

Retomando às memórias da Edna Yaka sobre como se davam os festivais, ela nos traz alguns detalhes sobre a forma do Tuikuri ensinar: Era exigente na hora de ensinar as músicas tradicionais, exigia pronúncia e separava as pessoas que tinham as vozes mais bonitas, também separava as músicas usadas nas brincadeiras. O mesmo comandava no meio do terreiro toda a festa, cantando, incentivando e convidando a todos para o meio da roda. Bom anfitrião, recebia todos com grande alegria e amor. Tinha uma voz forte que ecoava no meio da aldeia. Quando se cansava, atava sua rede embaixo de um grande pé de manga junto com outros velhos e de lá observavam acontecer a festa, e assim concretizou-se o Festival Yawanawá.

Realmente, um grande homem, um grande espírito que tive a honra de conhecer e de receber ensinamentos. Ele me tratava do mesmo jeito que tratava os jovens de sua aldeia.

Infelizmente este espírito forte nos deixou, passando "para o outro lado" há alguns anos atrás, aos 86 anos de idade, vitimado pela diabetes, e, a seu pedido antes de subir para a aldeia sideral, foi sepultado ao lado dos pais na sede do antigo Seringal Cachinaua, que, a partir de seu sepultamento, passou a ser chamada de “Aldeia Sagrada”.

A "nova geração", Festival Yawa 2015 - Foto: Biraci Junior
Antes de partir, deixou registradas suas histórias em materiais diversos, como o livro “Tuï kuru ãnihãu xinã” recentemente lançado, com suas histórias escritas e em áudio. Deixou outras gravações para seus filhos e netos, contanto histórias de sua vida, de seus pais e do povo Yawanawá.

Ele se foi cedo, jovem ainda para os padrões de sua geração. Que o diga o velho Yawa que já passou do centenário e continua cheio de vitalidade, realizando os rituais em sua comunidade e em outros cantos deste Brasil.

Tuikuru marcou minha vida e deixou saudades. Sempre que escuto a canção Kanarô, executada pelas mulheres Yawanawá, sinto um aperto no coração e com muito esforço seguro as lágrimas.

Após sua morte vimos pipocar festivais em todas as outras terras indígenas, que viram nesta ideia a oportunidade de fortalecer a cultura e aproximar tanto os parentes quanto os parceiros da comunidade.

Alguns anos depois os próprios Yawanawá criaram outra festa, desta vez na aldeia Mutum, chamada “Mariri Yawanawá” que objetiva lembrar e honrar a vida deste importante ser.
De uma festa para os parentes próximos e do entorno, o Festival Yawa (e o do Mutum) hoje se transformaram em uma festa que há muito ultrapassou as fronteiras nacionais e a pirâmide social, recebendo visitantes do mundo inteiro e de diversas camadas sociais. Num nível em que se tornou necessário estabelecer “lista” de controle de convidados, por não ser possível receber e acomodar todos os que se interessam em participar.

Fiquei feliz e emocionado por ser convidado para participar, com convite entregue pessoalmente pelo Biraci Nixiwaka e seu filho Biraci Junior. Para mim foi um reconhecimento, mesmo que singelo, de que eu faço parte desta história, e isso me deixou realmente emocionado.

Agendas e missões urgentes me impossibilitarão de me fazer presente em corpo, mas em espírito estarei dançando no terreiro, brincando com as mulheres e homens, bebendo caiçuma, tomando rapé e Uni e pulsando meu coração na mesma cadência deste lindo povo.

Aos visitantes que irão participar, aviso: aproveitem e entendam que cada sorriso que derem, cada gota de Uni que tomarem, cada canção que ouvirem, cada brincadeira que participarem e cada dança que executarem são resultado do esforço e dedicação de um povo, representado por um grande líder que, do alto da aldeia sideral, onde se encontra agora, sorri feliz por recebê-los em sua aldeia, em mais uma de suas festas.

Despeço-me resgatando de minhas memórias, devidamente gravadas, um dos muitos
Da esquerda para a direita: Yawa, Tuikuru e Jairo Lima, 2002 - Foto: Jairo Lima
conselhos que este querido professor me deu enquanto comíamos uma deliciosa farofa de piaba em sua casa: “sabe que a gente tem costume e tem cultura. Você sabe a diferença? Isso é importante para que você possa entender os índios e se entender também. Costume é tudo o que fazemos e que acreditamos ser melhor de fazer tipo calçar uma sandália para evitar pisar em espinho. Cultura, meu filho, é bem diferente, é aquilo que se aprende com os mais velhos, com a mãe, com o pai, é algo que você olha ao redor e vê que todos também fazem, como se estivessem seguindo uma ordem que ninguém sabe de onde veio. Sabe porque? Porque a cultura tradicional do índio é como um espírito vivo que entra em cada pessoa da aldeia e a preenche. Isso é cultura, mas é preciso valorizar, pois senão este espírito vai embora e o que sobra? Sobram só os costumes, e quando estes costumes  que sobram são os aprendidos só com os nawa, não servem de muita coisa para o índio.

É isso ai velho Tuikuru, é isso ai....
Boa semana a tod@s

Jairo Lima

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