quinta-feira, 15 de junho de 2017

‘FALANDO COM’, ‘FALANDO POR’ ou ‘FALANDO DE’: as nada sensíveis diferenças na comunicação e a invisibilidade de quem deveria ser protagonista

Por: Raial Orotu Puri

Quero começar este texto com uma pequena narrativa sobre um fato que testemunhei tempos atrás. Não pretendo nomear pessoas, e não por algum tipo de receio sobre o que e de quem estou falando. É que minha intenção aqui é destacar não tanto a situação e seus envolvidos em particular, mas o comportamento percebido. Talvez alguns dos que leem reconheçam o evento. E talvez outros tantos reconheçam nesse caso particular um espelho de outros vários. Provavelmente! Afinal de contas, eu ando cada vez mais incerta sobre a existência dessa coisa que chamam ‘fato isolado’.

Pois bem, senta que lá vem história...


Certa vez, há não muito tempo, em uma galáxia não tão distante, em um lugar chamado ‘Universidade’, foi anunciada com muita pompa e circunstância que ocorreria um seminário que contaria com a presença de um indígena para fazer uma palestra. Esse indígena é notória e amplamente conhecido e reconhecido por suas qualidades, portanto, obviamente muita gente foi ao reino de Universidade, tanto aqueles que que já fazem parte de sua população habitual, os que a frequentavam como estudantes ou professores, quanto indígenas que queriam conhecer e ouvir a importante fala do parente. Mas aconteceu que, chegada a ocasião da palestra, a plateia acabou sendo tomada por um enorme desconforto diante de um imprevisto: Eis que em companhia do indígena estava uma estranha figura que, por alguma razão que escapava a todos, sentou-se ao lado do palestrante, e, como se fosse ele a pessoa convidada a palestrar, acabou invadindo o espaço do verdadeiro protagonista, interrompendo-o sem parar e prejudicando o curso da apresentação.
 
Do ponto de vista do acompanhante, aquilo que ele fazia parecia ser algo natural, talvez uma forma de ajudar o palestrante, de ‘explicar melhor’ para os ouvintes os conceitos, de torna-los inteligíveis para o público. O problema é que todo mundo estava entendendo tudo muito bem o que o parente dizia. O problema é que ninguém foi lá para ouvir aquele explicador. O problema é que a gente foi lá para ouvir o parente e não aquele branco não-convidado e inconveniente. O problema que ficou chato, chatíssimo. Mas o problema ainda mais sério é que teve gente que esteve na mesma palestra, mas por uma certa mágica ignorativa de situações ridículas, simplesmente não se deu conta do que estava acontecendo.

Existe um nome-conceito para este tipo de atitude quando se trata de casos em que um homem se vê tomado de uma necessidade súbita de explicar para uma mulher uma coisa que ela certamente já sabe, talvez melhor do que ele: mansplaining. O termo é uma junção das palavras inglesas “man” (homem) e “explaining” (explicar). Também existe um nome-conceito para o ato de interromper o tempo todo a fala de uma mulher em uma reunião ou palestra, não permitindo que ela conclua seu raciocínio: Manterrupting, tratando-se de junção de “man” (homem) e “interrupting” (interrupção). Não sei se existe um termo para as pessoas que assistem a essas circunstâncias e não veem nada de errado.

Vale citar, inclusive, que recentemente rolou pelas redes uma matéria sobre um painel de Física ocorrido em Nova York, onde o mediador do evento foi interpelado por um grito da plateia, justamente por ficar o tempo todo interrompendo a fala de uma das palestrantes, impedindo-a a de explanar suas teorias. Após quase uma hora de mansplaining e manterrupting, uma moça que assistia ao debate levantou-se e gritou “Deixe-a falar!”, causando uma enorme comoção em toda a plateia, que compartilhava da sensação de incômodo, que a ovacionou pela manifestação que acabou por permitir que o debatedor
reconhecesse seu erro e permitisse que, finalmente, a cientista tivesse liberdade de fazer sua exposição.

Puxei esses conceitos do feminismo acadêmico precisamente porque gostaria de apontar aqui duas coisas que para mim são muito sérias. A primeira, é que eu obviamente sei muito bem que esses conceitos não se amoldam ao caso que eu narrei acima, porque ele se passou entre dois homens. Então, nesse caso, não podemos falar de machismo.

E podemos falar do que?

Porque precisamos falar de uma coisa que se faz presente de forma extremamente corriqueira dentro do ambiente acadêmico, e dentro de qualquer ambiente minimamente tido como intelectualizado, onde é muito comum que em uma roda de conversa, palestra, congresso ou seja o que for, repentinamente brancos se veem tomados de um estranho e inconveniente espírito de explicador/tradutor/voz de um indígena plenamente capaz de se expressar e se explicar sem intermediários. Precisamos falar também, porque no evento que eu reportei, por mais incômodo que a situação tivesse despertado na plateia, ainda assim ninguém ultrapassou a barreira para gritar ‘Deixe-o falar!’

Que nome, então, eu poderia dar a isso? Preconceito étnico-acadêmico? Talvez. Precisa dar um nome? Parece que sim... segundo me parece, é preciso que uma coisa tenha nome para ser real, e para que se faça algo a respeito. Então, seja esse o termo correto ou não, o fato é que o problema existe, e precisa ser revisto.

Devo repetir: não se trata de caso isolado. Se torna de norma vigente, sobretudo dentro da área profissional/acadêmica na qual eu me vejo inserida, a Antropologia. E, infelizmente, mesmo na atualidade, em tempos de ‘construção compartilhada de conhecimentos’, ‘empoderamento’, ‘protagonismo’ e ‘reconhecimento do lugar de fala’ ainda se está longe, muito longe mesmo, de efetivamente se dar o espaço e o devido respeito para aqueles que por razões óbvias possuem muito mais propriedade para tratar dos temas que lhes dizem respeito diretamente. Eu sei que pode parecer exagero, mas vocês não façam ideia de quantas vezes nessa vida testemunhamos situações do tipo o antropólogo querendo falar para os indígenas o que eles são, como são, como deveriam agir, porque isso, aquilo, assim ou assado é o comportamento que se espera, e se reporta como ‘adequado’ para aquele povo, de acordo com os parâmetros do livro que ele leu a respeito.

E, a propósito, queria contar um segredo básico para vocês... Chega aqui bem pertinho que eu vou sussurrar, tá? Então vamos lá:
Nem tudo o que os livros de antropologia dizem é verdade!!!
Tá bom? Então tá bom!

Ironias à parte, eu creio que é realmente necessário refletir que mesmo os antropólogos mais esforçados, podem ter se equivocado a respeito de um dado ou outro (ou de todos), assim como tudo pode ter mudado de maneira tão drástica que as coisas simplesmente não são mais do jeito que foi escrito há 10, 20, 60 anos atrás. E fora as maquiagens e manipulações de dados que eventualmente ocorrem. Afinal de contas maus profissionais existem em todos os lugares.

E, voltando à questão do feminismo, eu gostaria de alinhar algumas palavras nessa conversa acerca da questão da mulher indígena, apontando a segunda questão que me incomoda. Quero situar que minha reflexão em torno do tema se dá em face de um debate recente que tive com uma parente e algumas apoiadoras da causa indígena, depois da publicação de uma matéria de uma reconhecida feminista negra brasileira, na qual ela falava sobre a questão das mulheres negras serem vítimas especiais do machismo no país, por serem elas também vítimas do racismo. Seu foco no referido texto era o fato de que as mulheres negras são as maiores vítimas de estupro no Brasil, dado que é comprovado por estatísticas.

Pois bem, a estatística de fato está correta, e a mulher negra é estatisticamente a maior vítima de estupro no Brasil. Sim. É. Todo mundo sabe da lamentável verdade disso, e do quão inquestionável é essa informação. Assim como ninguém com um mínimo de humanidade é capaz de não se envergonhar com a ciência de que não existe quase nada de concreto sendo feito para modificar essa realidade tão atroz.

E, óbvio que a questão vai muito além do ponto central do debate trazido na matéria que eu citei (link ao final desse post), pois a mulher negra é também ‘campeã’ das estatísticas que versam sobre violência doméstica, morte gestacional, óbito advindo de abortos, exploração do trabalho. Sim. É. Em todas as estatísticas que estejam sendo feitas que tratem de sofrimentos que mulheres possam sofrer em função do machismo ou do racismo, é óbvio que a mulher negra encabeçará a lista. E também é óbvio que existem circunstâncias que podem acrescentar ainda mais problemas para esta mulher. O fato de ser trans, por exemplo.

Mas a grande questão é que as mulheres indígenas sequer entram nessa estatística.
Vejam, não estou aqui questionando a quantidade de sofrimentos que as mulheres negras passam dentro da sociedade ocidental. Não mesmo. Mas é preciso falar sobre o fato de que não existem dados precisos sobre a violência contra a mulher indígena. Não existem, em realidade, dados precisos sobre quase nada que trate da mulher indígena.

Existem conquistas que as mulheres não-indígenas alcançaram, a duras penas e com muita luta, que não estão, no entanto, chegando à mulher indígena. E existem algumas pautas que chegam, mas de uma forma tão fora de contexto, que simplesmente não podem ser absorvidas, quiçá compreendidas.

Tempos atrás eu conversava com algumas conhecidas sobre um pesadelo comum daquelas foram vítimas de violência sexual: a queixa na delegacia. Ou, melhor dizendo, a quase total impossibilidade de ter um atendimento decente e conseguir prestar queixa numa delegacia sem ser novamente vitimada de outras tantas agressões nesse processo. Sim, é pavoroso, horrível, traumatizante, bizarro. Não desejaria nem que a pior pessoa do mundo precisasse passar por isso, e espero de todo o coração que eu nunca mais em toda a minha vida precise. E, se para mim que sou habitualmente ‘lida’ como branca foi tão difícil, e eu sequer consegui registrar o BO no meu caso, façam você ideia do tamanho da dificuldade se trata de uma mulher indígena.

Existe invisibilidade. E existe também uma falta bastante grave da parte de muita gente que, em tese, se propõe a dar espaço e visibilidade. Existe um silenciamento dentro de espaços que deveriam ser inclusivos, dentre os quais, eu preciso destacar o feminismo e a antropologia. Destaco-os como mulher, como indígena, e como profissional da área. Destaco-o por sentir literalmente na pele isto.  Destaco-o porque não se ouve “Deixe-a falar!”. Destaco-o porque algumas mulheres têm a capacidade de achar que, apenas por serem mulheres, não podem vir a ser opressoras. Mas são. Lamentavelmente são. E muito.
E acreditem, é realmente muito difícil e frustrante que, há tantos anos, as mulheres indígenas estejam falando, e falando, e falando, e gritando, e demandando, e lutando, e de repente a gente ainda ouça quem diga que “a discussão feminista entre os povos originários é incipiente e pouco produtiva”. Não gente. Não é. O problema é que quando uma mulher indígena fala, a) tem muita gente que não escuta; e b) tem muita gente que escuta, mas deslegitima.

Isso porque o feminismo brasileiro é muito baseado em um modelo importado e pouco
adaptado de contextos estrangeiros, notadamente Estados Unidos, e dentro desse modelo acaba não sendo capaz de abarcar sequer o universo de mulheres brancas e citadinas, cujas vivências e histórias fazem delas uma diversidade imensa dentro de uma única sociedade, quiçá poderá, portanto, ser suficiente para abarcar o contexto muito mais amplo representado por tudo aquilo que não é branco, no qual estão inseridas negras urbanas, negras quilombolas, ciganas, trans, ribeirinhas, pescadoras, sertanejas, migrantes, presidiárias, moradoras de rua, e tantas outras. E, como então dará conta de envolver e incluir as outras ontologias?

E sim, sei que existem sim vertentes do feminismo que são mais inclusivas. O feminismo interseccional é um deles, e em grande medida, é ele que eu considero enquanto base possível de diálogo. Mas mesmo aí, a abertura não é suficiente. Mesmo aí temos limites, barreiras, silenciamentos. Mesmo aí, é possível que uma pauta indígena seja desconsiderada ou desacreditada como ‘não-empoderadora’, ‘não-feminista’, ‘reflexo do patriarcado’. Mesmo aí, conceitos que não se encaixam (a começar por ‘patriarcado’) podem ser levantados.

Este texto não é conclusivo... e talvez eu volte a falar disso em outra ocasião... Talvez.
Fica, por hora, apenas a tentativa de exprimir uma coisa: se por acaso você for não-indígena e está querendo fazer um bom trabalho de inclusão e empoderamento de um indígena, tenha em mente o pequeno cuidado de avaliar se, nesse processo, você não está silenciando ao invés de dar voz, se você não está achando que o indígena precisa ser explicado e traduzido para ser entendido. Se você mesmo por acaso compreende. Se você mesmo escuta. Se você mesmo enxerga. Se você mesmo não está sendo babaca.  

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Para quem quiser ler as matérias referendadas no texto:
“Deixe-a falar”
http://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/08/ciencia/1496936040_826575.html
“É preciso discutir por que a mulher negra é a maior vítima de estupro no Brasil”
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/14/politica/1468512046_029192.html

* Todas as imagens são de autoria do artista indígena Jaider Esbell


Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).

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