quinta-feira, 8 de junho de 2017

PARTO NATURAL: Fazer ‘como as índias fazem’ ?

Por: Raial Orotu Puri

Dias atrás vi um post de uma amiga de face compartilhando uma reportagem bastante elogiosa a respeito de uma cena de novela atualmente no ar na TV aberta. Como o comentário me chamou a atenção, resolvi abrir o link para dar uma olhada. Tratava-se do elogio a uma cena considerada inédita na dramaturgia brasileira, na qual um dos personagens auxilia a sua esposa em um trabalho de parto inicialmente difícil, ensinando-lhe a fazer ‘do modo como as índias fazem’. Após a iniciativa, o bebê nasce com facilidade, e o desfecho termina com sorrisos aliviados de todos os presentes.

Cabe comentar que meu interesse pelo texto em questão não foi tanto a descrição da cena em si, nem a defesa do parto natural. De início, o que me chamou a atenção foi ‘ensinar como as índias fazem’.

Bem, ressaltemos que, obviamente, o parto retratado não foi necessariamente uma imitação de um parto indígena, mas do emprego de alguns métodos que são apresentados como sendo das indígenas. A moça já está em trabalho de parto de seu primeiro filho, exausta de tanto esforço, e sem contar com a ajuda especializada disponível à época (uma parteira). A solução de emergência é dada pelo esposo da parturiente, que vai lhe explicando o que havia observado durante uma estadia junto de um povo indígena. Visto que é a primeira vez que ouço falar dessa novela, não sei nada sobre a trama em questão, e guardarei para mim as reflexões sobre algumas impraticabilidades dessa cena em particular. Meu objetivo aqui não é dissecar folhetins, nem ser fiscal dos dados etnográficos alheios... meu ponto é outro.
Pois bem, a matéria destacava a cena por sair do padrão comum das cenas de partos difíceis e caras de dor, e mostrar um conteúdo que acaba por enfatizar valores ligados a um movimento que tem ganhado relativa projeção no Brasil, que incentiva o parto natural como alternativa à ‘medicalização do parto’ e à ‘indústria das cesarianas’, defendendo, dentre outras coisas, a opção por partos realizados em casa, longe do ambiente hospitalar.

Como deve ser de conhecimento de alguns, o Brasil possui dados alarmantes acerca do número de partos cesáreos, muitos dos quais seriam inicialmente desnecessários. O volume é tão elevado que fala-se em ‘epidemia’ de cesarianas. Opondo-se a isso há o movimento de defesa da humanização do parto, com pautas tais como o atendimento humanizado no hospital, ou a possibilidade de ter o parto em casa; poder escolher e adotar uma posição fisicamente mais confortável durante o processo e mais favorável ao parto; não ser obrigada a episiotomia; ser acompanhada durante o processo por uma pessoa à escolha da parturiente, que pode ser inclusive, uma parteira ou uma doula.

E é inegável que todas essas pautas são muito pertinentes e necessárias, e haveria realmente proveito se viessem a ser amplamente adotadas no sistema de saúde público brasileiro. Mas é justamente aí que há um nada pequeno porém a ser considerado: é impossível ignorar que a bandeira do parto humanizado é hasteada dentro de um círculo muito limitado e específico de mulheres, e por isso é complicado não pensar nas implicações de um movimento cuja possibilidade de adesão acaba passando pela condição financeira.

Pois sim, do mesmo modo que é preciso ter dinheiro para pagar por uma cesariana, para optar por um parto natural na modalidade ‘com doula, música ambiente, massagem nas costas, bebê nascendo na banheira, e vídeo sensível publicado no youtube’, a interessada
precisará de dinheiro para dispender. Aliás, posso estar enganada, mas comparativamente, e pensando somente no valor financeiro em questão, acredito que possivelmente o parto cesáreo deve sair mais em conta. Acontece, e não ignoro isso, que não se trata de uma questão apenas financeira. No entanto, ainda que não seja ‘só’ o dinheiro em questão, ainda se está falando em uma possibilidade de escolha com valor embutido.

Crianças nascem todos os dias, mas há uma enorme diferença entre as mulheres parturientes e os modos como dão à luz os seus bebês, e essa diferença não é nem pequena, e nem possível de ser ignorada. Há aquelas que terão partos vaginais porque é esse o ‘normal’ delas, há as que precisarão procurar um parto hospitalar e lá poderão ter ou não um parto vaginal, e há aquelas que poderão optar de fato por seu parto e, mesmo para essas, é sabido que sua opção poderá ser respeitada, ou não. E há por fim aquelas que terão condição de escolher, e ter como resultado exatamente aquilo que escolheram.
Enquanto isso, em uma outra margem, mulheres indígenas e mulheres não-indígenas pobres em geral têm seus filhos à moda antiga, como fizeram suas mães, e as mães delas antes. Para elas muitas vezes – ou quase nunca – não se trata de opção, porque não há uma alternativa neste caso. E obviamente que não há nada de errado no fato das parturientes indígenas terem seus filhos majoritariamente por partos normais. (Muito pelo contrário, que a Deusa assim conserve, aliás!) Mas que fique registrada a diferença entre uma coisa e outra, e que praticamente a única semelhança entre os casos é o fato de serem partos vaginais.

E só para ser bem explícita, caso alguém assim o esteja entendendo, este texto não é uma crítica ao parto natural, ou às mulheres que o defendem. De forma alguma! Eu só e tão somente só estou refletindo sobre o fato de que esse movimento, apesar de tratar de algo que poderia ser universalmente acessível, acaba por ser limitado e restrito. Portanto, longe de criticar o movimento em si, eu lamento é que o mesmo não seja abrangente e capaz de alcançar mulheres que de fato precisam de apoio.

E isso é péssimo, principalmente para mulheres grávidas de baixa renda que são alvo de inumeráveis situações de violência obstétrica, humilhações e maus tratos, a começar pela indiscriminada prática da episiotomia, e que, justamente por serem pobres, não têm sequer a chance de confrontar os médicos e exigir tratamento digno. E que ninguém se faça de inocente sobre o quão difícil pode ser ter poder e condição necessários para contestar um médico, sobretudo se você é uma mulher pobre prestes a dar à luz. E não há como não pensar também que existem ainda outros grupos de mulheres cujos níveis de vulnerabilidade são ainda mais dramáticos, como aquelas que se encontram dentro do sistema prisional, só para citar um exemplo... É por ter consciência da existência dessas mulheres, vivendo à margem da margem que não posso deixar de pensar na necessidade de avaliação desta pauta do parto natural e da humanização do parto. Se ele não se estende ou não alcança quem mais precisa, é complicado.

Façam ideia, portanto, do quão difícil é no caso de mulheres indígenas que acabam necessitando de atendimento médico no momento do parto. E eu sugeriria que qualquer pessoa que fala e defende o parto humanizado parasse um pouco para ouvir sobre como é ‘parir como uma índia’ dentro de um hospital público. Os relatos dão conta de absurdos dos mais variados, boa parte deles fruto de preconceito étnico: desconhecimento e desinteresse por compreender particularidades culturais, ausência de intérpretes para parturientes não
falantes do português, proibição da entrada de parteiras, negação à adoção de procedimentos necessários à manutenção da vida da mulher ou do nascituro, dentre outras.  
Um desses casos – mais um! – ocorreu na madrugada de domingo, 21 de maio, no município de Manoel Urbano, Acre: uma indígena deu entrada na Unidade de Saúde do município e, devido a seu histórico médico, deveria ter sido submetida a uma cesariana, mas foi forçada ao parto vaginal, o que desencadeou uma hemorragia. A Unidade não dispunha de remédio para estancar o sangramento e, dado que o estado dela se agravou, intentou-se removê-la para a capital Rio Branco, mas como não havia ambulância, ela não foi transferida, e veio a falecer.

Percebem a questão? Uma mulher que, segundo o relato, precisava de uma cesariana, mas foi forçada ao parto vaginal. E eu juro que não gostaria de pensar no porquê dessa escolha, mas não consigo. E o resultado dessa intuição me adoece... E então quando tudo dá errado e essa mulher começa a sangrar sua vida, não há remédio para ministrar, e não há ambulância que a transporte para um hospital com mais recursos. E ela se foi. E ela foi morta. E não foi a primeira. E se nada mudar, também não será a última.
 
E vejam: citei casos daqui no Acre, mas sei que se for perguntar para as mulheres indígenas em quaisquer dos estados do país, se verá a repetição de situações idênticas. E, sou obrigada a perguntar: aonde estaria o movimento pelo parto humanizado nesses momentos? Não está! Onde estão na hora e que mais uma parente sangrou sua vida em um hospital? Não está! Aonde está na hora de cobrar por investigação e punição dos culpados? Não está! Aonde está na hora de mobilizar para que mais mortes absurdas como essa não ocorram? Não está! Aonde está na hora de apoiar e defender as 69 Propostas para a Atenção da Saúde Indígena que foram construídas na 1ª Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas, ocorrida no mês de abril em Brasília? (E, a propósito, as 11 primeiras propostas desse documento se referem juntamente à questão da atenção à parturiente). Pois é... Também não estão, né?

A luta fica, como quase sempre, a cargo do grupo diretamente vitimado. Normal, né? Acontece que o fato de normalmente ocorrer não descaracteriza a anormalidade dessas situações. Não, não deveria ser assim! Não deveria ser assim, dentre outras coisas porque volta e meia a gente é obrigada a escutar uma dessas moças do movimento pelo parto humanizado dizer #somosíndias – até bloquinho de carnaval “DAZíndia” já teve, estão lembrados?! – e dizer que se sentem assim, índias, ao ‘peitar os médicos cesaristas’. Não queridas, desculpa, mas vocês não são todas índias. Não são. Mesmo. E não apenas não são como não estão nem aí para os problemas ‘das índias’ reais, e não as apoiam nem mesmo no momento em que existe uma pauta que deveria ser teoricamente comum: a universalização do atendimento de qualidade à parturiente na rede pública de saúde. Porque essa sim é que deveria ser a pauta, né?

E, óbvio: sei que não se pode generalizar, e que há gente boa e bem-intencionada dentro do movimento, o qual como eu já disse tem muitas pautas essenciais e importantes. Mas, e fica sempre um grande mas: enquanto esse movimento não for de fato inclusivo e acessível para aquelas que mais precisam dele, fica complicado defender e achar que tudo está lindo.
Vale dizer, e lamentar também, que isso não é uma exclusividade deste movimento. Pelo contrário, existem por aí muitos outros que de início poderiam ser considerados louváveis, mas que acabam caindo no mesmo tipo de enredo que aqui destaquei, de ser reservados àqueles poucos que têm condição de pagar para tomar parte na pauta defendida, e que ao mesmo tempo parecem perder esse horizonte do quanto são elitistas e classistas, passando a adotar a péssima falácia do “É só querer que consegue”, ignorando que para uma considerável parte das pessoas, nunca é só querer para conseguir, seja lá o que for,  principalmente dignidade.

Essa tendência pode ser percebida em diversos movimentos, tais como ‘alimentação saudável’, ‘agroecologia’, ‘bioconstrução’, ‘métodos educacionais alternativos’, ‘medicina tradicional’ e até no âmbito do Sagrado.

E vejam, eu já disse mais de uma vez que, por mais purista que eu seja, não tenho, nem posso ter, uma visão totalmente negativa acerca da apropriação de práticas tradicionais e/ou indígenas por parte da sociedade não-indígena. Embora sim, as vezes isso me deixe entre irritada com certos níveis de desrespeito e mau-caratismo verificados, eu entendo que essa incorporação pode ser boa e válida, até porque boa parte dessas práticas são sem dúvida muito melhores do que a cultura predatória do mundo raion. E por precisamente acreditar na necessidade dessa mudança de orientação, inclusive por questões de sobrevivência e da continuidade do próprio mundo, não há como ser necessariamente antipática a tudo dentro desse processo.

Mas por isso mesmo, eu digo, e vou repetir à exaustão: se de fato o raion (não-índio) vai pegar uma parte do conhecimento de qualquer povo, e o faz porque entende que esse ou aquele aspecto cultural é valioso, que o faça com todo o respeito devido, e não se esqueça de conceder no mínimo o mesmo valor ao povo que é seu detentor originário. E, que por tudo ou qualquer coisa que considere sagrada, que tenha a decência de nos enxergar.
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Para saber mais:
- Link para a Carta das Mulheres reunidas na 1º Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas: http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/maio/02/Carta-final-propostas-I-da-Conferencia-Livre.pdf
- Notícia do mais recente caso de óbito de uma parturiente indígena no Acre: http://ecosdanoticia.net.br/2017/05/23/india-vai-obito-apos-parto-em-manoel-urbano-vereador-diz-que-hospital-nao-tem-remedio-para-estancar-hemorragia.html
Pequeno glossário de termos:
-Episiotomia é um corte cirúrgico feito na musculatura do períneo (entre a vagina e o ânus), com a intenção de ‘facilitar’ a passagem do bebê. Este procedimento, que seria para ser utilizado excepcionalmente acabou se tornando rotina ao longo dos anos. Um procedimento feito de forma errônea pode acarretar consequências terríveis para a mulher, e há inúmeros relatos assustadores a respeito desse adicional capítulo da violência obstétrica.
-A palavra Doula vem do grego e significa “mulher que serve”, e é uma mulher com ou sem experiência na área da saúde, que irá orientar e auxiliar a parturiente. Pode ser entendida
*Todas as imagens são de autoria do artista Eloi Jr. Nascido em Curitiba, ele era fisioterapeuta, mas decidiu seguir o sonho de ser artista, despertado nas aulas de Arte.

Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).

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