sexta-feira, 4 de maio de 2018

“AGORA FALA DE UM JEITO QUE EU ENTENDA“: sobre alguns entraves de comunicação para além da língua

Por: Raial Orotu Puri

Bikatani, Madijá!
Itaikiri, Ashenika!
Shara men, Shanenawa!
Shaba unanumamen, Huni Kui!
Bêsuê, Marubo!

Começo este texto com alguns dos termos que tenho aprendido aqui por estas paragens, e que servem como saudação ou quebra-gelo no início de uma conversa. Cabe, no entanto, observar que corro o risco de que alguns estarem grafados incorretamente (e peço desculpas aos leitores por isso!), assim como também é evidente que a simples utilização destas palavras seja suficiente para entabular um diálogo efetivo.

Esta reflexão, portanto, pretende falar sobre conversa, diálogo, compreensão, e, é claro, seus contrários, e também sobre alguns cuidados que me parecem necessários àqueles que acabam de chegar quando precisam estabelecer uma interação respeitosa com os outros.

Bom, sei que talvez me dizer ‘acabada de chegar’, já perto de inteirar cinco anos de Acre possa soar um tanto quanto estranho para quem me lê. Mas a verdade é que, quanto mais tempo tenho passado aqui, mais me vejo impregnada da certeza de que quanto mais tempo eu tenha passado, mais estarei como quem acaba de chegar... Ou, talvez, mais apropriadamente, como quem ainda está por chegar...

Sim, pois estou no Acre, o mundo aonde muitos mundos se encontram. Dentre os originários, na atualidade são quatorze, quinze, dezesseis... São muitos, já que as contas são difíceis de fechar com certeza. E fora esses que estavam por aqui desde que o Acre é Acre, há também alguns outros, que nascidos de pontos deste mapa que desenharam depois de nós, e que vieram para cá atrás de tomar parte nesse conversê todo – Opeh Schuteh, Puri!

E, claro, há também esse outro mundo, que também chegou depois de milhares de anos nos territórios aonde habitavam as nações originárias, mas que, mesmo chegando depois, se tomou em ares de proprietário, e, bom, o resto dessa história não precisa de muitas delongas, né?

Mas, seja como for, com o passar dos anos parece ter ficado mais assentado que, para que alguma coisa funcione, é preciso no mínimo tentar dialogar, se quisermos mesmo que esses mundos todos coexistam. Bom, eu sei que existe uma parte considerável dentre os membros da sociedade raion para quem a coexistência não é exatamente uma premissa, mas vamos deixar essa parte desgastante de lado, e focar naqueles que se dizem interessados em uma convivência minimamente harmônica conosco!

Porque é com esse grupo que tenho convivido com grande frequência em meu cotidiano pelos Acres da vida, e é nesse grupo também que vez ou outra me deparo com certas situações que provam bem que boas intenções só não bastam para garantir que, de fato, as coisas funcionem.

Quero citar agora dois fatos dos quais tomei parte neste mês passado, e que me parecem servir para ilustrar o que quero dizer.

I – “Agora fala de um jeito que eu entenda”

A primeira situação se passou em uma conversa com uma família Ashaninka que estava de retorno para sua terra, após um longo período na cidade para tratamento médico de seu filho mais jovem. Como era de se esperar, a fala do casal versava sobre os incômodos dessa permanência prolongada longe da aldeia, e sobre a falta que sentiam de sua casa e das suas referências. Como de hábito nas dinâmicas deste povo, a mulher do casal se expressava exclusivamente em sua língua.

Eis que o diálogo seguia relativamente bem, até que, a conversa acabou por ser interrompida por uma interpelação infeliz de uma profissional recém-chegada ao métier: após uma sequência de frases da matriarca da família, eis que a referida recém-chegada sapecou inadvertidamente a frase: “Agora fala de um jeito que eu entenda!”.

(...)

...Foram segundos, ou talvez uma eternidade, não sei dizer... O ar repentinamente pareceu pesado para a respiração, e eu prendi a minha, e olhei para ela. Notei a mudança repentina da cor de seu rosto, que rapidamente ganhou rubores, talvez de vergonha, talvez de raiva... Por um instante, ela abriu a boca, como se fosse falar, mas acabou baixando a cabeça e assim ficou...

Passados alguns momentos de incômodo silêncio, o marido tomou a palavra para esclarecer o que sua esposa havia dito. Era evidente que o clima amistoso que até então reinara em nosso pequeno grupo havia se partido, e, por mais que tenhamos continuado ainda alguns momentos juntos, nenhuma outra palavra foi dita pela mulher Ashaninka que até ali tinha sido bastante participativa no diálogo. Pouco depois aconteceram as despedidas e fomos embora, mas quando murmurei meu ‘até logo’ para aquele casal, meu coração estava pesado pelo que havia ocorrido.

E qual o porquê disto? Bom, meus caros... o porquê eu mais tarde cuidei de explicitar e esclarecer à incauta profissional que, sem intenção, acabou por cometer um erro. E hoje reflito também que talvez eu própria tenha errado em ter ‘deixado para depois’ o que talvez devesse ter sido imediato, mas acredito que por mais reprimendas que eu possa merecer pelo que fiz e não fiz, preciso ser fiel ao que de fato aconteceu...

Bem, acredito que não é desconhecido da maioria que a história muito recente do Acre foi de extrema violência para com as culturas indígenas aqui habitantes, e que uma das manifestações mais agudas do racismo aqui praticado foi a submissão ao regime escravocrata de exploração da borracha, e a proibição aos povos originários de praticarem suas manifestações culturais, e, dentre elas, a sua língua. Essa situação foi vivenciada de uma forma ou de outra por todos os povos que aqui habitavam, e, mesmo findo este tempo, ainda se encontram ecos dessas práticas racistas no cotidiano das relações interétnicas existentes na atualidade.

Acredito também que alguns conheçam a funesta expressão ‘cortar gíria’. Este termo, absolutamente pejorativo e preconceituoso era o tratamento dado às línguas indígenas. Nestes tempos atrozes, e que são tão recentes que ainda causam dor àqueles que os vivenciaram, é que fazem da expressão “Agora fala de um jeito que eu entenda” ter causado tanto desconforto quando foi proferida, ainda que, repito, naquele momento não tivesse uma intenção agressiva.

Acontece que algumas coisas, mesmo que ditas sem intenção de agredir, podem ter a força de uma bofetada, e não tenho muitas dúvidas sobre o fato de que ela foi sentida.

E, sabem... essa bofetada é sentida quase todo santo dia em que um indígena precisa ir a uma sede municipal em busca de qualquer serviço de natureza pública, ao qual ele tem total direito,  como cidadão brasileiro que é: só para citar alguns exemplos, a bofetada está nas placas das ruas, nos atendentes de banco, de postos de saúde e hospitais, na cara desconfiada dos lojistas, nos programas sociais que não se adequam aos seus usuários indígenas, na ausência de qualquer condição mínima que diminua o nível de animosidade que a cidade tem para com os indígenas. como se fossem eles – nós – os invasores do espaço alheio...

... Como eu já conhecia o casal Ashaninka que conversava conosco, sei que a matriarca da família entende relativamente bem o português, mas não fala. Se por não saber ou se por escolha própria, isso não compete a ninguém. Ela se expressa em sua língua, e sua língua é a expressão de seu povo, seu modo de ser gente e se situar no mundo.  

Exigir dos indígenas que falassem de um modo inteligível para os brancos era, e as vezes, ainda é, uma forma de negar a legitimidade da identidade cultural dos povos originários e, em verdade, entendo que é preciso inverter essa equação de desigualdade, se realmente existe interesse do mundo não-indígena em estabelecer um diálogo efetivo e respeitoso com os povos originários.

Quero aqui aproveitar para citar uma história anedótica que me chegou aos ouvidos no Jordão: conta-se que certo dia, numa reunião por lá, uma representante de não-sei-bem-que-órgão-federal-de-Brasília baixou por lá e, tomando a palavra, desfiou meia hora de termos técnicos em cima dos parentes. Terminada a sua preleção, ela perguntou se alguém tinha alguma consideração a fazer. Tendo sido dada a deixa, o finado Getúlio Sueiro Sales tomou o microfone e disse que ia apresentar as suas considerações, e fez então sua preleção em hantxa kuĩ, gastando mais ou menos o mesmo tempo de fala da palestrante. Terminado a fala, ele voltou-se para a palestrante e perguntou o que ela tinha entendido. Ela, sendo sincera, disse que não havia entendido nada. Ele então respondeu:
- Pois é, a gente também não entendeu nada do que a senhora falou. Então, faz favor de começar tudo de novo, mas agora fala direito!

Percebe?! Meu ‘caro’ raion (não-índio), é você que tem de falar de um jeito que se entenda, e não o contrário!!

E isso, ‘querido’, passa por assumir algumas posturas pessoais menos etnocêntricas e colonialistas. Dentre elas, o assentamento efetivo e eterno de que a sua cultura é só ‘mais uma’, nem melhor, nem maior e nem mais ‘evoluída’ que as culturas dos povos originários. Isso implica em respeito. E respeito é devido.

E não, não estou dizendo que você precisa necessariamente aprender as línguas dos povos originários todas (se bem que se você se mata para aprender inglês, ou francês, ou alemão, e se acha muito importante por isso, porque não?!), mas implica em ter humildade em entender que não, não é você que precisa entender o que um indígena te diz. É você que precisa se fazer entender. Tá bom? Então tá bom!

II - Osheki rakabaantetae eroti aririka añabaete... – O papagaio nos imita quando falamos...

Passo agora a contar a segunda história da qual tomei parte. Essa também se deu junto ao povo Ashaninka, mas desta vez na Aldeia Alto Bonito, região do Médio Envira. Estava ali no aguardo de uma oficina a ser ministrada no local, e em companhia da equipe de saúde que aproveitava para realizar os atendimentos. Na ocasião, em um momento de folga, estava observando a interação das crianças da aldeia com a chefe da EMSI, a enfermeira Neide. O grupo de crianças se dedicava à tarefa de ensinar-lhe algumas palavras da língua de seu povo.

Como não poderia deixar de ser, os pequenos mestres riam bastante dada a dificuldade da aluna em repetir corretamente as palavras, mas, como professoras bastante exigentes, somente se davam por satisfeitas quando o termo parecia ter sido efetivamente aprendido. Aos poucos, alguns adultos também se juntaram ao grupo, o que tanto ampliou as risadas quanto a complexidade das palavras e das frases. Embora eu não fosse a aluna, também me apressei a anotar algumas coisas para minha lista particular...

Passados alguns momentos a conversa mudou para os nomes e seus significados, e então Neide perguntou se poderia receber um nome Ashaninka, e então os adultos começaram a conversar sobre que nome poderia ser dado. Antes que o veredito fosse dado, Töri, um dos pequenos professores apressou-se a gritar “Eroti!”, seguido de muitos risos da parte de todos os presentes. Após procurar nas suas anotações, logo Neide compreendeu o porquê das risadas, visto que eroti quer dizer ‘papagaio’, e esse era justamente o papel que ela vinha desempenhando.

Mais tarde, sr. Raimundo, liderança e AIS da aldeia acabou dando um nome mais apropriado para a enfermeira: Macatxo, que ele explicou ser um nome que reporta aos tempos primevos, quando Pawa criou todas as coisas, e as pessoas, os animais e demais seres eram capazes de se compreender perfeitamente... (Precisa dizer mais alguma coisa sobre o quanto eu admiro os Ashaninka? Não, né?!) Entretanto, é claro que as crianças seguiram – e não tenham dúvida que seguirão – chamando a sua aluna de Eroti...

Acontece meus caros, que imitar a fala, como um papagaio não é exatamente compreender o que se fala. Para aprender de fato, é preciso ser menos eroti e mais macatxo, para que se possa estabelecer um nível de entendimento verdadeiro: Cada língua é feita de um conjunto de signos e significados, e o aprendizado de uma língua requer uma compreensão mais profunda, que não é só alcançada por saber quais são as palavras que traduzem cada expressão que sabemos dizer.

E para que línguas e mundos distintos se comuniquem, é preciso que as fronteiras sejam afastadas. Sabe-se que retornar aos tempos primevos talvez seja um objetivo algo distante... os homens, em sua maioria, já não possuem mais o dom de falar com os animais e os demais seres que habitam os mundos, mas, nem por isso as portas da comunicação se fazem seladas e perdidas para sempre. As chaves que as abrem são encontradas na sensibilidade de quem se dispõe a se achegar respeitosamente aos donos desses mundos, e se dispõe humildemente a aprender...

Retornando para o começo desta reflexão, eu disse que tenho aprendido algumas saudações nas línguas indígenas do Acre. Mas acredito que isso importa bem pouco, se eu não sou capaz de agir com respeito para com as culturas originárias que são anfitriãs desta terra, que aqui estavam milhares de anos antes da chegada dos raion e da minha. E se eu não for capaz de, com minhas atitudes exprimir isso, pouco adiantará ser capaz de falar essas línguas todas.

Então, ‘caro’ raion, mesmo que você não seja capaz de dizer nem ‘bom dia’ nas línguas originárias, você pode ser entendido, e você pode nos entender. Para isso, não precisamos de um nheengatu que todos falem, precisamos de respeito. Tá bom? Então tá bom...

Sei que talvez eu esteja sendo muito exigente, mas acho que considerando alguns considerandos, eu posso ser. Um deles é o fato deste texto ser sido produzido com as emoções do mês de abril, que no Brasil tem lá pelo meio um dia que aqui é tão paradoxal quanto o é este país. O dezenove. Já falei dele em outros escritos, e creio que eles foram suficientemente claros para que eu não precise me repetir sobre o quanto de impróprio existe em acha-lo festivo, ao menos sem um pouco de reflexão que seja...

Não que o 19, ou todo o mês de abril não possa ser indígena. Não que todos os dias não o possam ser. São. Seja em luta, seja em resistência, eles tem sido, para mim e para muitos. E uma parte consistente e considerável dessa luta passa por um tema que eu repeti neste texto como se um eroti fosse: RESPEITO.

Respeito aqui é mais do que palavra; é compromisso. E espero sinceramente poder ter, da parte dos que travam contato com os povos originários – daqui e de qualquer lugar – o façam verdadeiramente compromissados a, de fato, agirem de modo a não serem mais uma ferramenta de violência, opressão ou falta de consideração por essa diversidade imensa, e pela riqueza incalculável que as culturas indígenas detêm.

Espero que pelo menos isso possamos cobrar de vocês, caros ‘raion’.

Então, sem mais... Dieh Opeh schuteh! (Bom dia pra você!)


Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e  doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua como antropóloga no Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Juruá - DSEI-ARJ.

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Imagens: Imagem 1 - Arte em desenho sobre foto de Alessandra Melo; Imagem 2 - Arte em desenho sobre foto de Joaquim Tashka Yawanawá; Imagem 3 - Arte em desenho sobre foto de Beth Lins Specht.

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